Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



sexta-feira, fevereiro 29, 2008


 

LITERATURA INFANTIL ORIGENS


Literatura infantil: origens, visões da infância e certos traços populares


por Ricardo Azevedo*



O objetivo deste artigo é comentar certos aspectos ligados ao estudo da chamada literatura infantil, particularmente os que dizem respeito às suas raízes e seus possíveis vínculos com a cultura popular. Se considerarmos que a origem da literatura infantil está necessariamente ligada ao surgimento da escola burguesa, portanto aos livros didáticos, teremos um tipo de literatura para crianças. Se, ao contrário, partirmos do pressuposto de que a literatura infantil é fundamentalmente ligada, tanto no plano do conteúdo como no da forma, às manifestações da tradição popular, teremos outra literatura, mais rica, complexa e humana.

1. Sobre as origens da literatura infantil
Numerosos estudiosos têm partido do pressuposto de que só se pode, realmente, falar em literatura infantil a partir do século XVII, época da reorganização do ensino e da fundação do sistema educacional burguês. Segundo essa linha de pensamento, antes disso e em resumo, não haveria propriamente uma infância no sentido que conhecemos. Antes disso, as crianças, vistas como adultos em miniatura, participavam, desde a mais tenra idade, da vida adulta. Não havendo livros, nem histórias dirigidas especificamente a elas, não existiria nada que pudesse ser chamado de literatura infantil. Por este viés, as origens da literatura infantil estariam nos livros publicados a partir dessa época, preparados especialmente para crianças com intuito pedagógico, utilizados como instrumento de apoio ao ensino. Como consequência natural deste processo, o didatismo e o conservadorismo (a escola, afinal, costuma ser instrumento de transmissão dos valores vigentes) deveriam ser considerados componentes estruturais, por assim dizer, da chamada literatura para crianças.
Trabalhos como Literatura Infantil y Juvenil en Europa - Panorama Histórico1 - da estudiosa francesa Denise Escarpit ou Análisis teórico del cuento infantil2 de Marisa Bortolussi, entre outros, nos apresentam, mais ou menos, essa visão geral.
A pretexto de reconstituir a história da literatura infantil, Denise Escarpit inicia seu trabalho já no séc. XVII, apontando quais teriam sido os primeiros livros para crianças. Cita, como exemplo, o trabalho Orbis Sensualium Pictus (1658), de Comenius, obra criada com o intuito de ensinar latim através de gravuras, um antepassado, sem dúvida, do nosso livro didático ilustrado para crianças. Antes do século XVII, afirma Escarpit, não existiria nada que pudesse ser tratado como literatura infantil. A pesquisadora francesa, entretanto, não deixa de mencionar diversas atividades expressivas e populares como as adivinhas, rimas infantis e certos jogos de palavras que, segundo ela, fariam parte da gênese da literatura infantil mas só ganhariam esse contorno - o status de literatura infantil - quando reaproveitadas e pelos primeiros livros destinados específicamente ao público infantil. Tal adaptação, note-se, significava, na verdade, a incorporação de aspectos francamente didáticos e utilitários, ligados à educação moral, por exemplo.
A autora refere-se às narrativas populares, por ex. fabliaux (narrativas breves, alegres, anônimas, em geral abordando pequenos casos da vida cotidiana - adultérios, espertezas etc. muito populares no período medieval.); contos maravilhosos (de fadas ou de encantamento); fábulas; lendas etc., frisando que, basicamente, eram dirigidos a adultos e contados por adultos. Faz ainda uma interessante associação entre a cultura popular, o que era produzido pelo e para o povo, e o que era oferecido às crianças. Diz textualmente Denise Escarpit que, neste período,:

“Decir ‘popular’ equivale a decir ‘bueno para los niños’”.

Que essas narrativas eram compartilhadas por adultos e crianças é fato conhecido e confirmado por Phillipe Ariès3 e Peter Burke4 entre muitos outros historiadores. Aliás, por essa época, eram tênues os limites entre a vida adulta e a infantil.
Ariès compara a criança medieval a um delicado e querido bichinho de estimação. A morte de crianças pequenas, lembra ele, era fato corriqueiro, seja por falta de higiene, por doenças, pela fome ou por causa das intempéries. Sofria-se com tal perda, mas tratava-se de um episódio banal, passível de ocorrer em todas as casas. Outras crianças, em todo caso, nasceriam.
Conseguindo sobreviver aos riscos da primeira infância, o ainda pequeno indivíduo medieval já costumava, lá pelos sete anos de idade, ser encaminhado para o aprendizado de alguma profissão. Sempre segundo Ariès, sabemos que a criança desta época adquiria seus conhecimentos, principalmente, através do aprendizado prático e pela convivência social. A escola medieval era uma instituição precária, bastante desorganizada e pouco comparável com a que conhecemos em nossos dias. Além das escolas eclesiásticas, estabelecidas, em princípio, para formar religiosos, existiam cursos avulsos, mantidos por professores e mestres-escolas (que eram livres para estipular seus próprios currículos) também avulsos, e só. Em todo caso, é certo que, por esta época, poucas crianças iam à escola ou permaneciam nela por muito tempo.
Participando da vida comunitária, dos costumes sociais, hábitos, linguagem, jogos, brincadeiras e festas, aparentemente não havia, no período medieval, assuntos que a criança não pudesse conhecer. Os temas da vida adulta, as alegrias, a luta pela sobrevivência, as preocupações, a sexualidade, a morte, a transgressão das regras sociais, o imaginário, as crenças, as comemorações, as indignações e perplexidades eram vivenciadas por toda comunidade, independentemente de faixas etárias. Na verdade, a criança de mais de sete anos ocupava, ao que parece, o papel de um pequeno adulto, inexperiente e frágil, incapaz de certas coisas talvez, mas já uma pessoa na vida, importante como força na família e na sociedade. Vale lembrar que o espírito popular medieval, coletivo por princípio, ligado a festas e atos públicos era, ao mesmo tempo, marcado pelo fatalismo, pela crença no fantástico, em poderes sobre-humanos, em pactos com o diabo e em personificações de todo tipo. Nesse mundo, onde a crença em fadas, gigantes, anões, bruxas, castelos encantados, elixires, tesouros, fontes da juventude, quebrantos e países utópicos e mágicos era disseminada, crianças e adultos sentavam-se lado a lado nas praças públicas, durante as festas, ou à noite, após o trabalho, para escutar os contadores de histórias.
Neste sentido, falar em “contos maravilhosos” ou “de encantamento” quando nos referimos às narrativas populares medievais pode ser considerado um equívoco. Não havia neste contexto, principalmente levando-se em conta as concepções populares, uma separação nítida entre o “real” e o “fantástico”. Mesmo hoje, pensando bem, essa separação é assunto complexo e discutível. O “realismo”, portanto, em termos, a “realidade”, para muitos, como Ehrenzweig5, baseia-se fundamentalmente em esquemas convencionais, culturais e compartilhados, de apreensão e percepção. Em outras palavras, segundo o autor, em princípio, vemos e captamos o que fomos condicionados a ver e captar.
Mas voltemos à tentativa de discutir as origens da literatura infantil.
Não é possível negar que falar em contos de fadas hoje, tem significado para todos nós, quase que automaticamente, falar em crianças. Sem colocar em discussão suas diversas denominações, contos de encantamento, contos maravilhosos, fábulas ou simplesmente contos populares, como queria André Jolles6, importa lembrar sua notável influência em inúmeras obras da literatura infantil. Não poucos autores de livros para crianças e outros, utilizaram e continuam utilizando, como referência, vários aspectos temáticos e formais dos contos populares para desenvolver seu próprio trabalho. Vale lembrar, entre muitas outras, obras como Pinóquio7, Aventuras de Xisto8, História meio ao contrário9, Uma idéia toda azul10, Os pregadores do Rei João11, A Fada-Sempre-Viva e a Galinha-fada12 e Tampinha13, todas com evidentes vestígios das narrativas populares.
Se é verdade que o universo dos contos populares pode, de alguma forma, ser vinculado a um certo “universo infantil” (visto com as devidas ressalvas; discutiremos o assunto logo abaixo), a literatura para crianças possivelmente teria outras raízes, desvinculadas da fundação da escola burguesa, e, assim, novas indagações vêm à baila.
O estudo dos contos tradicionais, essas narrativas dirigidas a todas as pessoas, independentemente de faixas etárias, pelo menos se levarmos em consideração as pesquisas de estudiosos díspares como André Jolles e Paul Zumthor ou Mikhail Bakhtin, Peter Burke e Johan Huizinga, demostra que os mesmos representam verdadeiro depósito do imaginário, das tradições e da visão de mundo oriundos de um certo “espírito popular”, estando enraizados em antiquíssimas narrativas míticas. Além disso, sobreviveram ao longo dos séculos através da transmissão oral feita por contadores de histórias, jograis e menestréis, num tempo, nunca é demais frisar, em que a vida comunitária e coletiva era intensa (em oposição à vida privada e dos interesses individuais).
Ora, se o conto é típica expressão da cultura popular e se, com o passar do tempo, houve (para não dizer que talvez sempre tenha havido) uma aproximação entre conto popular e a infância, ou entre o popular e o infantil, vale indagar: que características, afinal, têm esses contos e quais delas, eventualmente, podem ter permanecido vivas na literatura para crianças?

2. Sobre um certo “universo infantil”Antes de continuar, vamos examinar um pouco o que significa este “para crianças”.
Classificações usuais como “infantil” e “juvenil”, podem, naturalmente, ser úteis em determinadas situações (por exemplo, as mercadológicas), mas, convenhamos, parecem bastante imprecisas. “Infantil” indica crianças. Mas, que crianças? De três, cinco, sete, nove ou onze anos? Alfabetizadas ou não? É possível tratar uma pessoa de sete da mesma forma que tratamos uma de nove? Um livro para uma criança de oito anos agradaria a uma de dez?
Para alguns, pessoas de onze anos já não seriam crianças mas sim adolescentes, portanto caracterizáveis como “juvenis”. Mas o que seria “juvenil”? Jovens de onze, de treze ou de quinze? É possível tratar um jovem de onze da mesma forma com que tratamos um de quinze? Quais os pontos comuns e as diferenças entre um jovem de treze e uma criança de nove anos? Seriam duas pessoas de treze anos iguais?
Questionamentos deste tipo têm, na verdade, algum cabimento?
Considerando a literatura, a motivação estética, o discurso ficcional, poético e não utilitário, faz sentido falar em livros dirigidos a determinadas faixas etárias? Seria válido dividir a complexa realidade humana, matéria prima da arte, em abstratos grupos de idade? É possível tratar a infância como uma massa homogênea de pessoas? Para determinar graus de escolaridade talvez sim, mas para falar em experiência existencial?
No caso dos livros didáticos, a divisão dos assuntos em faixas etárias parece ser um procedimento bastante razoável. Pensamos no conteúdo de determinada matéria, com contornos nítidos, organizado num grau crescente de dificuldades, dividido em tantos anos letivos, transmitido de forma objetiva a indivíduos com, mais ou menos, as mesmas características e no mesmo estágio físico e neurológico.
Considerando a existência de livros de literatura infantil, contendo um discurso subjetivo, ficcional e poético, não didático (não utilitário) por princípio, o mesmo procedimento seria válido?
E levando-se em conta a óbvia (e humana) diferença entre as experiências individuais de cada um? Há crianças de 8 anos que já trabalham. Há meninas de 11 anos que já são mães. Há filhos de pais separados. Há crianças que perderam o pai. Há traumas. Há temperamentos. Há sonhos. Há vivências absolutamente pessoais (o gosto, os prazeres, a perspectiva do sublime). Além disso, é possível encontrar, num mesmo grupo, pessoas oriundas de tradições, culturas e concepções de mundo diferentes.
Em suma, há de tudo quando levamos em conta o plano da existência particular e não o da genérica, esquemática e higiênica estatística.
A visão que temos hoje do que seja criança é ligada, naturalmente, ao nosso contexto histórico, social, científico (epistemológico) e cultural. Estamos habituados a conviver, pelo menos em certas classes sociais, com uma infância apartada da vida adulta (do trabalho, da sexualidade, da política etc), habitando um universo delimitado por assuntos escolares, certo vocabulário, certas brincadeiras e certos assuntos. Em outras épocas, existiram outras crianças, tratadas de outras formas, ocupando outros espaços dentro da família e da sociedade. No período medieval, como vimos, crianças e adultos trabalhavam duro. À noite, sentavam-se lado a lado e juntos deliciavam-se com as mesmas histórias, participavam das mesmas festas e, pelo menos em tese, estavam sintonizados com as mesmas inquietações. Se examinarmos a vida da criança pobre, habitante de uma favela, hoje, encontraremos situação similar. Num outro extremo, em nosso período histórica e em certas camadas sociais, podem ser encontrados jovens com mais de vinte anos de idade sem noção do que seja o trabalho ou o exercício da cidadania
Voltamos à questão, aparentemente ingênua. O que são crianças? Que recursos afinal, estão virtual e potencialmente presentes na infância? Seria esse conceito, este estágio da existência, uma coisa tão cristalina, consensual e nítida assim? O que são adultos? É possível tratá-los como uma massa homogênea e abstrata? Será válido generalizar esses termos com tamanha segurança?
Se de fato, óbvia e indiscutivelmente, existem diferenças entre adultos e crianças, separá-los em dois mundos distintos com contornos claros parece-nos uma idealização precária e redutiva, bastante afastada de qualquer coisa que se possa chamar realidade.
De momento, em todo o caso, o que nos interessa são principalmente os seguintes pontos:
1) se levada a sério, a noção de que existem dois universos líquidos e certos separando crianças e adultos irá, fatalmente, nos levar a determinado tipo de literatura infantil;
2) se considerarmos que adultos e crianças compartilham, em linhas gerais, um mesmo universo, com certeza teremos outra literatura infantil, a nosso ver infinitamente mais rica e complexa e humana.
3. Vínculos entre o conto popular e a literatura infantil
Vale a pena tentar apontar alguns pontos que, em nossa visão, poderiam aproximar as narrativas populares da literatura para crianças.
No plano da expressão, do discurso (ou do significante), sabemos que os contos populares sobreviveram ao longo dos séculos de boca em boca, transmitidos por bardos, menestréis e contadores de histórias. Estes, invariavelmente, recorriam a um discurso conciso, a uma linguagem marcada pela expressão oral, fórmulas verbais pré-fabricadas, ditados, frases feitas e a um vocabulário popular e acessível, tendo em vista a comunicação clara e direta com a platéia14.
Encontraremos situação análoga na maioria absoluta das obras destinadas ao público infantil: textos concisos, marcados pela oralidade, utilizando vocabulário familiar e construídos com a intenção de entrar em contato com o leitor.
Da mesma forma, no plano do conteúdo, muitos pontos de contato unem os contos populares à literatura infantil. Vamos enumerar apenas alguns deles:
1. A recorrência do elemento cômico. O riso, o deboche, a alegria e o escárnio como revide aos paradoxos contrapostos pela existência;
2. O uso singularmente livre da fantasia e da ficção, muitas vezes como forma de verificação ou experimentação da verdade;
Estes dois primeiros itens, para Mikhail Bakhtin15, são índices das mais arcaicas tradições populares.
3. Personagens movidos muito mais por seus próprios interesses, pelo livre arbítrio, pela aproximação afetiva, pelo senso comum, pelos sentidos, pela empatia, pela visão subjetiva, pela busca da felicidade (a moral ingênua referida por André Jolles) do que por uma ética geral, pré-estabelecida, racional, abstrata, uniforme, objetiva, imparcial e impessoal, que pretende determinar, a priori, o certo e o errado. Na literatura infantil, a moral ingênua reaparece regendo personagens que vão de Emília de Lobato e Raquel de A bolsa amarela de Lygia Bojunga ao Menino maluquinho de Ziraldo, parentes, sem dúvida, dos também transgressores e inesperados Juca e Chico, Pinóquio, Alice e Peter Pan;
4. Certos temas e enredos tradicionais remanescentes, ao que tudo indica, de imemoriais narrativas de iniciação, e que poderiam, mesmo que precariamente, ser rotulados como “a busca do auto-conhecimento ou da identidade” (é recorrente em numerosos contos de fadas. Na literatura infantil, surge em obras que vão de Pinóquio e As aventuras de Alice no País das Maravilhas16 a A bolsa amarela17 e o Homem que soltava pum18) ou a “luta do velho contra o novo” (basta lembrar de contos populares como A Branca de Neve e de obras como Peter Pan19 e, por que não, As aventuras de Alice no País das Maravilhas, A bolsa amarela e o Homem que soltava pum);
5. O uso livre de personificações e antropoformizações;
6. A possilbilidade da metamorfose;
7. As poções, adivinhas, instrumentos e palavras mágicas;
8. Histórias apresentando um caráter iniciático, nas quais o herói parte, enfrenta desafios (é engolido por um peixe, perde a memória, vê-se transformado num monstro etc.) e retorna modificado;
9. Imagens recorrentes como vôos mágicos, monstros, oxímoros etc;
10. O final feliz. Este recurso, presente em inúmeras narrativas populares, é considerado por muitos um índice de alienação. Na verdade, este expediente, utópico por natureza, parece estar enraizado em certas concepções arcaicas como as que preconizam a renovação periódica do mundo (o “eterno retorno”). Por este viés, tudo no mundo é fecundado, nasce, cresce, prospera, decai, apodrece, morre e renasce. Em outras palavras, tudo, no fim, acaba voltando à pureza original, portanto, no fim, tudo dá certo. “Se não deu certo”, diz o ditado popular, “é porque ainda não chegou ao fim”20.
4. Conclusão
Ao abordar temas tão amplos num espaço tão exíguo não tivemos, nem de longe, a pretensão de ser conclusivos.
Fica clara porém, no que diz respeito ao estudo da literatura infantil, a necessidade urgente de discutir alguns pontos: 1) a oposição entre uma literatura infantil necessariamente utilitária (ligada à lição e à intenção didática) e outra necessariamente poética (= literária) e não-utilitária (ligada à ficção, à intenção estética e à especulação existencial); 2) a oposição entre a existência de um “universo infantil” e outro compartilhado, basicamente por crianças e adultos; e ainda, 3) a identificação das raízes da literatura infantil com o surgimento da escola burguesa em oposição aos elos existentes entre a literatura infantil e os contos maravilhosos, portanto, à “cultura popular”.
* Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador, é doutor em letras pela Universidade de São Paulo

BIBLIOGRAFIA

1) ESCARPIT, Denise. La literatura infantil y juvenil en Europa. Trad. Diana Flores,
México, Fondo de Cultura Económica, 1981.
2) BORTOLUSSI, Marisa. Análisis teórico del cuento infantil. Madrid, Alhambra, 1985.
3) ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. 2ª ed. Trad. Dora Flaksman. Rio
de Janeiro, Guanabara, 1981.
4) BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. 2ª ed. Trad. Denise Bottmann. São
Paulo, Companhia das Letras, 1995.
5) EHRENZWEIG, Anton. A ordem oculta da arte. Trad. Luís Corção. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1969.
6) JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo, Cultrix, 1976.
7) COLLODI, C. Pinóquio. Trad. Edith Negraes São Paulo, Hemus, 1985.
8) ALMEIDA, Lúcia Machado de. Aventuras de Xisto. 5ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1973.
9) MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. 7ª ed. São Paulo, Ática, 1986.
10) COLASANTI, Marina. Uma idéia toda azul. 15ª ed. Rio de Janeiro, Nórdica, 1979.
11) CAMARGO, Luís. Os pregadores do Rei João. São Paulo, Ática, 1980.
12) ORTHOF, Sylvia. A Fada Sempre-Viva e a Galinha-Fada. 6ª ed. São Paulo, FTD, 1994.
13) LAGO, Ângela. Tampinha. São Paulo, Moderna, 1995.
14) ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. A. Pinheiro e J. P. Ferreira. São Paulo,
Companhia das Letras, 1993.
15) BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro, Forense, 1981.
16) CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e outros textos. Trad. Sebastião Uchoa
Leite. Rio de Janeiro, Fontana/Summus, 1977.
17) NUNES, Lygya Bojunga. A bolsa amarela. 6ª ed. Rio de Janeiro, Agir, 1981.
18) PRATA, Mário. O homem que soltava pum. São Paulo, Escrita, s/d.
19) BARRIE, J. M. Peter Pan. Trad. Maria Antonia Van Acker. São Paulo, Hemus, s/d.
20) Sobre o assunto, CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem. Trad. Tomás Bueno. São Paulo, Martins
Fontes, 1994; ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo, Perspectiva, 1972 e
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 2ª ed. Trad.
Yara Frateschi. São Paulo- Brasília, Hucitec, 1993.


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sábado, fevereiro 23, 2008


 

A FILOSOFIA E A INFÂNCIA



A Filosofia na Infância e a Infância da Filosofia



CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA DA CRIANÇA
Diz-nos Gaston Bachelard que "a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade".
Filosofia e infância parecem ser coisas distantes. O lugar da infância é o lugar da brincadeira, da espontaneidade, da descoberta e do não saber. Em contrapartida, o lugar da filosofia é o mundo dos conceitos abstratos, do conhecimento, da competência e da seriedade. Não é à toa que o Programa de Filosofia para Crianças causa um certo estranhamento.
Se por um lado encontramos críticos defendendo a incompatibilidade entre o universo da criança e o mundo enigmático dos conceitos próprios da filosofia; de outro, encontramos defensores do Programa de Filosofia para Crianças que julgam ser a filosofia a arte de perguntar sobre o que todo mundo já sabe e, conseqüentemente, entendem que crianças, loucos e artistas têm muito a ver com a filosofia.
Uma análise dessas duas formas de entender "filosofia" e "infância" pode revelar alguns equívocos. O primeiro diz respeito ao próprio conceito de infância ou da criança. Durante muito tempo ouvimos expressões do tipo "Isso não é coisa para criança" e assim as crianças comiam em mesas separadas dos adultos e não podiam participar das conversas familiares. O que era "coisa de criança" era determinado por aqueles que sabiam, tinham experiência e razão. A infância era o lugar da não razão. Desta forma, temas como o do conhecimento, da vida, da morte, do certo e do errado eram inacessíveis às crianças.
A descoberta das relações entre racionalidade e infância é bastante recente e só foi possível graças às contribuições da filosofia, da psicanálise e ao desenvolvimento da psicologia cognitiva. Muitos autores poderiam ser aqui citados como Rosseau, Montesquieu, Piaget, Vigostky, Dewey. A redescoberta da infância provocou uma verdadeira revolução nos meios educacionais, nas relações sociais e na própria concepção de infância. As crianças passam a ter vez e voz, passam a ter direitos e espaço para o desenvolvimento da autonomia moral e cognitiva na família, na escola, no bairro, etc.
Mas a descoberta das relações entre racionalidade e infância também coincide com o grande projeto iluminista que pretendia fazer o homem senhor de si e do mundo graças ao uso crítico da razão. A liberdade, a igualdade e a fraternidade ainda são quimeras do mundo contemporâneo. Alguns diriam que o sonho da razão que liberta fracassou. A pós-modernidade coloca a razão em cheque e resgata novamente o lugar da infância como o lugar da não razão. A infância é então aclamada como lugar da imaginação e da negação de um projeto fracassado. A infância passa a ser a meta dos que desconfiam da racionalidade. Fazemos a apologia da infância, como a apologia da loucura e nada mais comum do que contemplarmos, neste contexto, a infantilização das relações e a "ditadura da criança" em contraposição à "ditadura dos adultos". Assim é fácil entender porque alguns repudiam filosofia para crianças e afirmam a impossibilidade da filosofia com crianças. Razão e infância mais uma vez parecem não combinar
Para os que sustentam a crença na racionalidade como esforço de construção de sistemas explicativos e assim concebem a filosofia desde o seu surgimento no Ocidente, Filosofia para Crianças estaria distante do que é propriamente a filosofia. Já para os que desconfiam do esforço racional na construção de grandes sistemas filosóficos, a filosofia e a infância estariam mais próximas do que se imagina, entendida a filosofia como exercício de problematização e de criação.
Mas tanto para os que defendem a possibilidade de relação entre filosofia e infância como para aqueles que a negam, o Programa de Filosofia para Crianças de Lipman é visto como ginástica intelectual que retira da infância o que ela tem de melhor, ou seja, o brincar, a imaginação livre das regras da racionalidade.
Para Lipman, as crianças são filósofos inatos não apenas porque perguntam e se inquietam com as certezas, mas também porque são seres capazes de pensar de forma crítica, criativa e cuidadosa. O pensamento não estaria livre das regras da razão, mas submeteria essas regras ao exame de critérios razoáveis. Finalmente, poderíamos nos perguntar para que submeter crianças às regras da lógica e da racionalidade. Que sentido isso teria no universo infantil?
Pensar as ambigüidades e contradições presentes na linguagem cotidiana não é submeter crianças ao aprisionamento da lógica enquanto ginástica intelectual, nem tampouco fazer das crianças estudiosos dos grandes sistemas filosóficos, seja estes da filosofia da linguagem, da ética ou de qualquer área da filosofia. Aproximar filosofia e infância é buscar meios para um pensar mais reflexivo.
Neste sentido, a infância da filosofia é a inspiração para Lipman construir suas novelas filosóficas. Afirma o criador do Programa de Filosofia para Crianças: "Na Grécia dos pré-socráticos, os filósofos se sentiam à vontade com os modos de expressão poético e aforístico, bem como com a linguagem comum."
Por que então negar a aproximação da filosofia com a infância?

Publicado pelo CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA DA CRIANÇA no Jornal Informativo do CBFC, agora em edição virtual


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sexta-feira, fevereiro 15, 2008


 

EDUCAR PARA PENSAR



Matthew Lipman



Com o título Educar para Pensar, a primeira parte do livro de Matthew Lipman é composta de quatro capítulos que têm os seguintes subtítulos : o modelo reflexivo da prática educativa; aprendendo a pensar; a plenitude do desempenho cognitivo; cognição, racionalidade e criatividade.
Pelos títulos já se pode depreender que Lipman pretende explicitar aspectos importantes dos resultados de suas investigações a respeito do tema Educação para o Pensar.
Nosso objetivo, aqui, é colher algumas de suas explicitações, acompanhando-as de algumas considerações que julgamos úteis para nossa realidade brasileira e oferecê-las como subsídios para o trabalho em sala de aula. Especialmente o trabalho com o Programa Filosofia para Crianças.
Lipman se alinha àqueles que sustentam que "o fortalecimento do pensar na criança deveria ser a principal atividade das escolas e não somente uma conseqüência casual". (LIPMAN, 1995, p. 11).
Isto não significa que apenas trabalhando os conteúdos das várias disciplinas, automaticamente, o pensar dos alunos vai sendo desenvolvido e fortalecido. Significa afirmar que é preciso oferecer atividades voltadas, intencionalmente, ao cultivo do "pensar bem", além da oferta dos conteúdos. Estes últimos, sempre necessários.
Mas o que seria o "pensar bem"? Antes: o que constitui o ato de pensar?
Lipman coloca esta segunda pergunta à página 13 do livro, mas não é aí que ele a responde. Há uma resposta que chama a atenção à página 140: "pensar é fazer associações e pensar criativamente é fazer associações novas e diferentes".
Em passagem anterior a esta, Lipman afirma a mesma coisa sobre o que é o pensar, explicitando-a um pouco mais:
"Pensar é o processo de descobrir ou fazer associações e disjunções. O universo é feito de complexos (não há, evidentemente, realidades simples) como as moléculas, as cadeiras, as pessoas e as idéias, e estes complexos têm ligações com algumas coisas e não com outras. O termo genérico para associações e disjunções é relacionamentos. Considerando que o significado de um complexo encontra-se nos relacionamentos que este tem com outros complexos, cada relacionamento, quando descoberto ou inventado, é um significado, e grandes ordens ou sistemas de relacionamentos constituem grandes corpos de significados."(LIPMAN, 1995. p. 33).
Nas duas passagens Lipman está afirmando que pensar é o processo de descobrir relações existentes na realidade e representá-las em nossas consciências e que isso nos permite atinar para os significados ou os sentidos que, de alguma forma, estão dados na mesma.
Esta não é uma tarefa fácil, pois a realidade é complexa nas suas relações e inter-relações. Mas a única forma de apreender o seu sentido é estar apreendendo as relações que a constituem. E, se estas relações são dinâmicas, isto é, estão sempre se refazendo e se modificando, o nosso pensamento precisa estar atento e precisa ser competente para apreendê-las neste seu dinamismo.
Lipman indica, ainda, uma possibilidade especial do pensar: a de produzir ou criar novas relações e, portanto, a de os seres humanos estarem produzindo novas significações ou novos sentidos para a realidade e, por conseguinte, para suas próprias vidas, visto que fazem parte do processar-se da realidade.
A forma através da qual os seres humanos concretizam sentidos ou direções na realidade é sempre a sua prática, a sua ação. Ao mesmo tempo em que vão agindo e pensando reflexivamente o seu agir, os seres humanos podem estar representando as relações implicadas na realidade e podem estar representando intelectualmente novas relações. Tanto as relações percebidas quanto as relações criadas ou construídas são trabalhadas na consciência como indicadoras das direções (sentidos) da prática humana.
A ação tem, como componente importante e necessário, o processo do pensar. Não é só o pensar que determina a ação, mas o pensar, nos seres humanos, é um dos determinantes da ação. O pensar produz sentidos, direções, significações na e para a ação. Daí a importância de que o pensar seja bem "produzido", isto é, seja construído com rigor, sistematização, profundidade, com examinação (sic) constante e séria e com disposição constante a revisões (auto-correção), levando em conta as várias situações na sua globalidade e, dentro de cada realidade situacional, as relações dadas e as possíveis.
Um pensar assim, para Lipman, é um pensar bem, é um pensar de ordem superior que é crítico e criativo.
A expressão mais utilizada por Lipman, neste livro, para se referir ao pensar bem é pensamento de ordem superior que ele opõe à expressão pensamento de ordem inferior.
Algumas afirmações suas podem nos ajudar a ir entendo o que ele quer dizer com esta expressão que, assim como outras, diz ele, são contagiadas pela inexatidão ( p. 37) :
Diferentes observadores atribuem diferentes propriedades ao pensamento de ordem superior, mas, em geral, o que parecem querer dizer é que este pensamento é conceitualmente rico, coerentemente organizado e persistentemente investigativo. (LIPMAN, 1995, p. 37)
Podemos acrescentar que o pensamento de ordem superior não equivale somente ao pensamento crítico, mas à fusão dos pensamentos crítico e criativo. ( idem, p. 38)
Em um esclarecedor quadro, à página 43, Lipman indica algumas características do pensar de ordem superior que, aí, é também chamado de pensar complexo. Ele envolve características do pensar crítico, como utilização de critérios, produção de juízos ou julgamentos, auto-correção, sensibilidade ao contexto e outras. Envolve, também, características do pensar criativo, como sensibilidade aos critérios sem se deixar aprisionar por eles, capacidade de auto-transcendência, isto é, capacidade de "ir além ou transcender a si mesmo" (nota da p. 44), ou seja, capacidade de produzir novas relações e não apenas constatar as relações já dadas.
É claro que aquilo que denominamos aqui de pensamento complexo inclui o pensamento recursivo, o pensamento metacognitivo, o pensar auto-corretivo e todas aquelas formas de pensamento que envolvem a reflexão sobre sua própria metodologia, enquanto examinam, ao mesmo tempo, seu tema principal. (idem, p.43).
Essas são características do pensamento crítico; mas o pensamento de ordem superior inclui, também, o pensamento criativo, como já foi assinalado acima.
Como características do pensamento criativo, Lipman aponta habilidade, talento, julgamento criativo, inventividade, produção de alternativas ou hipóteses plausíveis, etc. Tais características são indicadas em vários momentos desta obra.
Apesar da afirmação de que o pensamento criativo faz parte indissociável do pensamento de ordem superior e que ele é fundamental para o próprio pensamento crítico, Lipman se detém mais amplamente no estudo das características deste último.
Faz parte do pensamento crítico bem desenvolvido (e isto influencia e faz parte do pensamento criativo) a utilização ótima daquilo que Lipman denomina de habilidades cognitivas.
Vejamos isso um pouco mais detalhadamente.
Habilidades Cognitivas
No capítulo 2, Aprendendo a Pensar, Lipman inclui uma caracterização das habilidades cognitivas com o intuito de auxiliar os educadores a serem capazes, primeiro de reconhecê-las e, segundo, de realizarem atividades que possam fortalecê-las e desenvolvê-las.
A um dado momento deste capítulo, após tecer várias considerações sobre o raciocínio e sobre a linguagem, Lipman contesta um equívoco que ele diz ser comum: o de se afirmar que nossas habilidades de raciocínio aumentam e melhoram com a idade. Diz ele que isso é verdade apenas parcialmente. Todos nós contamos com um repertório básico de habilidades cognitivas que, se não forem estimuladas adequadamente por um processo educacional propício, não se desenvolverão para além deste repertório básico.
Na sociedade complexa e dinâmica de hoje, o domínio de um pensar de ordem superior (um pensar complexo) é instrumento fundamental de realização de todas as pessoas. Daí a sua proposta de uma educação para o pensar que contemple o desenvolvimento do pensamento crítico e criativo.
Mas quais seriam as habilidades cognitivas (ou habilidades de pensamento) que constituem o repertório básico que todos temos e que precisariam ser melhor desenvolvidas?
Lipman oferece uma primeira lista na seguinte passagem:
Assim, mesmo quando estamos envolvidos com os tipos mais elaborados de pensamento - longas cadeias dedutivas, construções teóricas altamente confusas, e coisas parecidas - pressupõe-se uma familiaridade com um número relativamente pequeno de atos mentais, habilidades de raciocínio e habilidades investigativas sobre as quais se baseiam as operações de pensamento mais elegantes e sofisticadas.
Sem a capacidade de presumir, supor, comparar, inferir, contrastar ou julgar, para deduzir ou induzir, classificar, descrever, definir ou explicar, nossa própria capacidade para ler e escrever estaria ameaçada, para não mencionar nossa capacidade para participarmos em debates em sala de aula, prepararmos experimentos e compormos textos. (idem, p. 57).
Pensamento de ordem superior é mais exigente quanto a critérios, razões, profundidade, abrangência de sua compreensão e ao contexto ou contextos a que se refere, quanto ao rigor, à auto-correção, a se ver e se acompanhar no seu próprio processar-se (metacognição), quanto a complexidade das relações que identifica ou que estabelece e reconstrói e quanto à sua capacidade reflexiva.
Ora, dirá Lipman, para um pensamento assim são necessárias habilidades cognitivas de ordem superior.
Aquelas do repertório básico são a base. Seu uso comum, sem determinadas qualidades, as tornam habilidades de ordem inferior. Seu uso de uma outra forma, num outro grau de complexidade, as tornam de ordem superior.
Lipman aponta, nas páginas 57 a 59, algumas características e formas de emprego do repertório básico das habilidades que as tornam de ordem superior. Dentre as referidas características e formas destacam-se a sua complexidade de uso, a coordenação e sequência entre elas quando do seu emprego e formas de sua aplicação expandidas e cumulativas.
As habilidades cognitivas são utilizadas assim, de uma maneira "superior", quando são articuladas naquilo que Lipman chama de mega- habilidades, isto é, grupos de habilidades que são utilizadas conjuntamente para as operações de raciocínio, investigação, formação de conceitos e tradução.
Habilidades de raciocínio, habilidades de investigação, habilidades de formação de conceitos e habilidades de tradução são expressões utilizadas por Lipman para indicar grupos de habilidades cognitivas. Cada grupo contém, ou envolve, várias habilidades que concorrem interligadamente para que aconteça, ou o raciocínio, ou a investigação, ou a formação de conceitos, ou a tradução.
Não só. Estes grupos de habilidades estão sempre funcionando interligadamente no nosso processo de pensar e, por conseguinte, no nosso processo de falar. É no nosso processo de falar que o nosso processo de pensar é operado. Sem linguagem, para Lipman, não há pensamento. Daí a importância que ele atribui à conversa organizada, isto é, ao diálogo investigativo que deve ser promovido na sala de aula. A sala de aula deve ser transformada em uma pequena, mas importante, comunidade de investigação.
Neste sentido são importantes as seguintes palavras de Lipman:
"Em relação aos objetivos educacionais, a matriz comportamental do pensamento é a fala, e a matriz do pensamento organizado (isto é, o raciocínio) é a fala organizada."
Em termos ideais, a comunicação linguística na infância inicial, no contexto familiar, prepara as crianças para pensarem na linguagem da sala de aula, e isto, por sua vez, as prepara para pensar nas linguagens das disciplinas. Mas, visto que a comunicação familiar raramente é o o que deveria ser, a conversa disciplinada e coerente na sala de aula deve ser oferecida como seu substituto.
"O grupo de conversação é a chave para a transição suave da vida familiar para a vida governada pelas normas da sala de aula. "(LIPMAN, 1995, p. 54).
Seria muito útil, para se ter uma idéia mais clara do que Lipman está pensando sobre diálogo e comunidade de investigação, ler a última parte deste livro e, em especial, o capítulo 14 que tem como título: Pensar em Comunidade.
Mas voltemos aos quatro grupos de habilidades cognitivas. É nas páginas 65 a 76, do livro que estamos examinando, que Lipman descreve e explicita estes quatro grupos de habilidades.
É bom notar que, com respeito ao grupo das habilidades de formação de conceitos, Lipman utiliza uma segunda denominação: "organização de informações". Isso faz sentido, pois todo conceito é, na realidade, uma organização de informações sobre algo que produzimos ou construímos em nossa consciência sobre algo.
É com as seguintes palavras que ele anuncia os quatro grupos:
"As áreas de habilidades mais relevantes para os objetivos educacionais são aquelas relacionadas com os processos de investigação, processos de raciocínio, organização de informações (formação de conceitos, é bom lembrar) e tradução.
É provável que crianças muito pequenas possuam todas essas habilidades de maneira ainda rudimentar.
A educação não é, portanto, uma questão de aquisição de habilidades cognitivas, mas de fortalecimento e aperfeiçoamento de habilidades. Em outras palavras, as crianças estão naturalmente inclinadas a adquirir habilidades cognitivas, do mesmo modo que adquirem naturalmente a linguagem; e a educação é necessária para fortalecer o processo." (LIPMAN, 1995, p. 65).
Interessante, nesta passagem, é que Lipman coloca o grupo das habilidades de investigação antes das habilidades de raciocínio, o que ele faz, também, à página 72. Em todos os seus outros textos por nós conhecidos, ele coloca, em primeiro lugar, o grupo das habilidades de raciocínio.
Ainda que esta ordem não seja essencial, é interessante notar nas suas explanações, que ele diz que, na investigação, nós produzimos as primeiras informações. Isto é, nós produzimos ou construímos nosso primeiro conhecimento que se expressa em juízos, ou seja, em afirmações que vamos produzindo a respeito de tudo que se apresenta a nós como necessário de ser entendido.
Juízos devidamente encadeados ou articulados entre si vão produzindo nosso pensamento articulado sobre a realidade e sobre nós mesmos, e são expressos nas proposições e nos discursos.

Habilidades de investigação
Para produzirmos juízos, precisamos investigar. Para investigar precisamos ser capazes de, no mínimo, observar bem, problematizar ou formular boas questões, formular hipóteses plausíveis, verificar cuidadosamente, constatar, chegar a produzir conclusões ( os tais juízos) e, muito importante, ser capazes de nos auto-corrigirmos toda vez que nossas conclusões se nos mostrarem enganadas.
"Investigação é uma prática auto-corretiva onde um tema é investigado com o objetivo de descobrir ou inventar maneiras de lidar com aquilo que é problemático. Os produtos da investigação são os julgamentos." (idem, p. 72).
Em Natasha, sua última obra traduzida no Brasil, ao ser interrogado quanto à expressão "habilidades de investigação", Lipman diz que a utiliza na "falta de melhor nome. São as habilidades empregadas para fazer ciência."(LIPMAN, 1997, p. 49).
Ora, as habilidades empregadas para fazer ciência são, dentre outras, as relacionadas acima e que Lipman não indica, nos seus escritos, em listagens assim, mas assinalando umas ou outras delas, ou apresentando-as numa grande listagem sem separá-las nos quatro grupos das "mega-habilidades".
Um exemplo de grande listagem das habilidades cognitivas pode ser encontrado às páginas 80 e 81 do livro: A Filosofia vai à Escola (LIPMAN, 1990). Neste mesmo livro, nas páginas 227 a 241, Lipman explicita o seu entendimento de cada uma das vinte e sete habilidades listadas às páginas 80-81.
É necessário que tal explicitação se dê para cada professor que se proponha a trabalhar educacionalmente na direção do desenvolvimento ou fortalecimento destas habilidades como o propõe Lipman.
Vejamos o que ele diz a respeito das habilidades que compõem o grupo das habilidades de raciocínio.

Habilidades de raciocínio
Comecemos com as seguintes palavras de Lipman:
"Raciocínio é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto através da investigação. Implica em descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto era mantido como verdade." (LIPMAN, 1995, p. 72).
Mas o que foi descoberto através da investigação?
Informações, por certo, que são organizadas nos nossos juízos ou nos nossos "julgamentos", conforme citação anterior.
Ora, os nossos juízos são afirmações (ou negações) que produzimos a respeito de uma situação, de um fato, de algo, após termos feito uma análise investigativa: descobrimos alguma "verdade" a respeito e a afirmamos com base na investigação feita.
Nós expressamos os juízos através de proposições ou orações.
Pois bem, diz Lipman, quando ordenamos e coordenamos os nossos juízos de uma tal forma que, a partir deles, nós ampliamos aquilo que havíamos descoberto na investigação, nós estamos fazendo um raciocínio.
O conhecimento origina-se da experiência. Uma maneira de ampliá-lo sem, no entanto, recorrer a experiências adicionais, é através do raciocínio. Considerando aquilo que conhecemos, o raciocínio nos permite descobrir coisas adicionais afins.
A partir de um argumento solidamente formulado, onde iniciamos com premissas verdadeiras, descobrimos uma conclusão igualmente verdadeira que é "inferida" em consequência destas premissas.
Nosso conhecimento baseia-se na experiência do mundo; é por meio do raciocínio que ampliamos este conhecimento, preservando-o. (idem, p. 66).
O raciocínio é, pois, o processo do pensamento através do qual nós produzimos nossas conclusões a partir de algo já sabido. Isso, todas as pessoas fazem, inclusive crianças pequenas.
Mas há raciocínios mais simples e raciocínios mais complexos, isto é, aqueles que fazem parte do pensamento de "ordem superior". Um dos objetivos de uma educação para o pensar deve ser o de ajudar crianças e jovens a serem capazes de realizar raciocínios mais complexos. Para tanto é importante promover o fortalecimento das habilidades de raciocínio que envolvem,
"... por exemplo, a utilização de inferências bem fundamentadas, a apresentação de razões convincentes, a revelação de suposições latentes, a determinação de classificações e definições defensáveis e a organização de explicações, descrições e argumentos coerentes." ( LIPMAN, 1995, P. 46).

Habilidades de formação de conceitos
A formação de conceitos implica na organização de informações para grupos relacionais e, então, analisar e esclarecê-los para facilitar sua utilização na compreensão e no julgamento.
O pensamento conceitual envolve relacionar conceitos entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos, explicações, etc. (LIPMAN, 1995, p. 72).
Esta organização de informações que construímos em nossa consciência pode ser expressa por palavras, por sentenças e por esquemas, diz Lipman, à p. 67. Trata-se de conjuntos de informações relacionadas entre si e que formam um sentido, um significado.
Pense-se, por exemplo, na palavra mesa. Se "dominamos", ou compreendemos o significado que esta palavra expressa, é sinal de que somos capazes de "ver" um conjunto de aspectos que, reunidos e interligados, nos dão a idéia, o conceito, do que constitui uma mesa. Não só. Na verdade, nós ficamos de posse de um conjunto significativo de informações inter-relacionadas (de um conceito) que nos ajuda a nos entendermos mutuamente quando falamos de mesas e nos ajuda a identificarmos como mesa os objetos que se nos apresentam com um conjunto de dados interligados desta mesma forma.
Nós podemos ir formando conceitos a partir de nossas relações diretas com as coisas, objetos, situações, etc., dentro de contextos situacionais culturais de uso e de significação ou, também, podemos formar conceitos sem estarmos em relação direta, física, com os objetos.
Em ambas as situações, para sermos capazes de formar conceitos em nós mesmos, precisamos ser capazes de relacionar idéias entre si; "esmiuçar" idéias que estejam juntas, isto é, analisar; juntá-las de novo, isto é, sintetizar; esclarecer significados; explicar; etc..
Esta é uma listagem de habilidades que auxiliam na habilidade maior de formação de conceitos que se pode encontrar nos textos de Lipman.

Habilidades de tradução
"Tradução implica na transmissão de significados de uma língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido, para outra, mantendo-os intactos." (LIPMAN, 1995, p.72).
Traduzir, então, é conseguir dizer algo que está dito com certas palavras ou de certa forma, por meio de outras palavras, ou por meio de outras formas, mantendo o mesmo significado. Diz Lipman, que isto é o que ocorre nas boas traduções de uma língua para outra. Mas isto ocorre, também, quando procuramos dizer, com nossas próprias palavras, algo que alguém disse com as palavras dele. Ou, ainda, quando alguém procura traduzir em gestos, ou em desenhos, etc., algo já dito ou expresso de qualquer outra forma. O importante é manter o significado.
Parece-nos óbvia a importância desta "mega-habilidade". Para o seu desenvolvimento, diz Lipman, é necessário desenvolver a capacidade de interpretação, bem como todas as habilidades envolvidas na formação de conceitos.
No seu livro Natasha (1997), Lipman tem passagens que explicitam, ainda mais, o que entender por tradução. Dentre elas, recomendamos a leitura da página 49.
O que procuramos mostrar neste texto foram algumas das idéias de Matthew Lipman sobre Educação para o Pensar. Trata-se de uma primeira aproximação do que Lipman diz. Obviamente, faltam, ainda, leituras de outros textos e maiores explicitações. Faltam, principalmente, análises críticas das propostas de Lipman.
Fica, aqui, convite e propostas para que outras pessoas ampliem o que está apenas começado.
Bibliografia
LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. São Paulo. Summus, 1990.
LIPMAN, Matthew. A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo. Nova Alexandria,1994.
LIPMAN, Matthew. O Pensar na Educação. Petrópolis. Vozes, 1995.
LIPMAN, Matthew. Natasha: diálogos vygotskianos. Porto Alegre. Artes Médicas, 1997.
Retirado de Filosofia para crianças- Mathews Lipman


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domingo, fevereiro 03, 2008


 

ANTROPOLOGIA DA CRIANÇA



por Clarice Cohn



Clarice Cohn é graduada em Ciências Sociais na USP, posteriormente com mestrado e doutorado no Departamento de Antropologia da USP. Trabalha com antropologia da criança e fez dela sua tese de Mestrado. É professora de antropologia, na graduação e no curso de pós-graduação lato sensu “sociopsicologia” ambos da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo. Abaixo transcrevemos a introdução de seu livro Antropologia da Criança, acreditando que esta introdução desperte um sem número de questionamentos para quem trabalha e principalmente cria para esse público tão especial e pelo que vemos, ao mesmo tempo, tão desconhecido.
Carlos Augusto Nazareth



Antropologia da Criança
Clarice Cohn
Jorge Zahar Editora

Introdução

“O que é criança? O que é ser criança? Como vivem e pensam as crianças? O que significa a infância? Quando ela acaba?
Perguntas nada simples de responder. Pelo contrário, elas podem esconder uma armadilha. Afinal, as crianças estão em toda parte, todos fomos crianças um dia, todos temos, desejamos ou não desejamos ter crianças. A literatura nos oferece textos de autores famosos que nos contam sua infância, poetas românticos falam com nostalgia de seu tempo de criança. É como se tudo já fosse sabido, como se não houvesse espaço para dúvidas.
Mas não é bem assim. Mesmo se fôssemos recolher todas essas informações sobre a infância e as crianças, veríamos que um punhado de idéias diferentes se apresentam. A criança pode ser a tabula rasa a ser instruída e formada moralmente, ou o lugar do paraíso perdido, quando somos plenamente o que jamais seremos de novo. Ela pode ser a inocência ( e por isso a nostalgia de um tempo que já passou) ou um demoniozinho a ser domesticado (quantas vezes não ouvimos dizer que “as crianças são cruéis” ?) Seja como for, em todas essas idéias o que transparece é uma imagem em negativo da crianças: quando falamos assim, estamos usando-a como um contraponto para falar de outras coisa, como a vida em sociedade ou as responsabilidades da idade adulta. E pior, como isso afirmamos uma cisão, uma grande divisão entre o mundo adulto e o das crianças.
Portanto se quisermos realmente responder àquelas questões, precisamos nos desvencilhar das imagens preconcebidas e abordar esse universo e essa realidade tentando entender o que há neles e não o que esperamos que nos ofereçam. Precisamos nos fazer capazes de entender a criança e seu mundo a partir do seu próprio ponto de vista. E é por isso que uma antropologia da criança é importante. Ela não é a única disciplina científica que elege esse obejto de estudo:a psociologia, a psicanálise e a pedagogia têm lidado com essas questões há muito tempo. Mas é aquela que, desde seu nascimento, se dedica a entender o ponto de vista daqueles sobre quem e com quem fala, seus objetos de estudo. ( ... )
Hoje, portanto, uma antropologia da criança pode ser desde aquelea que analisa o que significa ser criança em outras culturas e sociedades até aquela quef ala das que vivem em um grande centro urbano. Se a antropologia ampliou assim seus horizontes de estudo, não deixou de se definir como uma ciência social com certas particularidades. (...)
Mas estudar as crianças tem sido um desafio para a antropologia. As razões são muitas, e a principal parece ser justamente a dificuldade em reconhecer na criança um objeto legítimo de estudo. Afinal, em várias esferas, que vão do senso comum às abordagens do desenvolvimento infantil, pensa-se nelas como seres incompletos a serem formados e socializados. (...)
Desde a década de 1960, conceitos fundamentais da antroplogia, como cultura e sociedade ou estrutura e agência são revistos e reformulados. Além disso algo que não é menos importante: começou-se a perceber na criança um sujeito social. A partir dessa reformulação, que apresentaremos a seguir, novos estudos vêm sendo propostos e realizados, e com eles novas descobertas sobre o mundo das crianças têm surgido. Este livro traz um mapeamento das várias abordagens antropológicas sobre o tema, além de uma discussão sobre os limites e as possibilidades de uma antropologia da criança.
E-mail para contato com a autora: clacohn@uol.com.br


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