Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



quarta-feira, julho 19, 2006


 

ANA MARIA MACHADO 1975


Absolutamente atual - infelizmente


por Ana Maria Machado




Este texto de Ana Maria Machado, de 1975, está no site cbtij.org.br, do Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude.
Temos trazido alguns textos que nos mostram que a realidade do teatro infantil se modifica sazonalmente.
Temos um texto de 1975 absolutamente atual, que poderia ter sido escrito hoje.
Isso nos ratifica que as ações frente ao teatro infantil têm sido pontuais, não têm continuidade, e não há uma vontade política de se levar arte e cultura ao povo, muito menos a criança – o que é muito mais grave, pois é neste momento de formação que a arte é importantíssimo como elemento formador.
De modo que republicamos aqui no blog, pela atualidade do texto. Podemos parar e refletir, em 2006, sobre todos os pontos levantados por Ana Maria Macahdo, em 1975.
Ações drásticas e contínuas – só assim será possível reverter este quadro, acabando com o paternalismo, onde não se quer apontas as falhas dos espetáculos – “porque coitados já fazem com tanto esforço”. Mas o queremos no palco não é esforço é talento e qualidade.
Portanto é necessário acabar até mesmo com um certo corporativismo, sempre contraproducente
Carlos Augusto Nazareth


REALIDADE ATUAL DO TEATRO INFANTIL NO ESTADO DA GUANABARA

Ana Maria Machado

O título do tema que me coube, exige de saída que se definam certos limites. A realidade atual do teatro infantil na Guanabara, está aí apenas para situar, em linhas muito gerais, o assunto. Mas é fundamental dizer que não pretendo esgotá-lo (e nem seria possível), de modo algum, nem apresentar indicações ou soluções para os problemas levantados. Mas, apenas, ajudar a colocar dúvidas e perguntas, provocar um debate franco sobre o que vem sendo feito em uma cidade brasileira como o Rio no setor do teatro infantil. E levantar esse problema a partir de uma conversa que é muito mais um depoimento pessoal de observadora, do que qualquer teorização ou testemunho de quem faz esse teatro. Eu não faço teatro, não sou pedagoga, não sou socióloga, não sou psicóloga. Tive uma formação em literatura e lingüística e acabei no jornalismo. Minha relação com o teatro é de espectadora. Gosto muito de teatro, sempre me interessei muito por teatro. E me preocupo muito com crianças. Por causa disso, acabei fazendo as críticas dos espetáculos infantis no Jornal do Brasil, uma coluna pequena, com pouco espaço, sempre ameaçada em potencial pela crise do papel, mas, enfim, a única seção de jornal que existe hoje no Rio inteiramente voltada para esse setor. Bom, o que aconteceu foi que por causa disso eu venho fazendo semanalmente, há dois anos, a indicação do que há de melhor em cartaz, com um comentário crítico (e as vezes um veemente aviso para fugir correndo de determinados espetáculos).
Ou seja, tenho visto peças infantis como ninguém. Possivelmente, no ano passado, eu assisti a mais espetáculos para crianças do que qualquer um de vocês aqui. Sinceramente, não me invejem. Vocês não fazem idéia do que possa ser isso. Basta citar alguns números. Só no ano passado,foram apresentadas na Guanabara 81 peças infantis, contadas pelos anúncios publicados no Jornal do Brasil, sem levar em consideração apresentações em colégios, churascarias, etc. Por si só, o número de 81 peças em 52 fins de semana é eloqüente. Deve atestar a existência de uma grande vitalidade no teatro infantil carioca. Ou então, deve ser o sintoma de graves problemas o que me parece bem mais provável. Ainda mais, se levarmos em consideração que, dessas 81 peças, 18 foram montadas pelo mesmo grupo, e foram de péssima qualidade.
... é grande a variedade, além da grande quantidade. E há alguns fenômenos estranhos nessa proliferação de montagens para crianças. Há estréias que são promovidíssimas, com esquema profissional de divulgação em seu lançamento, ficam duas semanas em cartaz, desaparecem misteriosamente, voltam daí a três ou quatro meses em outro teatro — e às vezes até com outro título — levam mais três semanas, saem... Enfim, não deve ser tão tranqüila a carreira dessas produções. Ao mesmo tempo, sabe-se que há grupos que montam seus espetáculos exclusivamente para ganhar dinheiro. E ganham. Eu acho que uma das coisas que vamos ter que discutir aqui é justamente isso: o lado comercial disso, como funciona o mecanismo do mercado, um problema fundamental da prática do teatro e que tem que ser considerado. Eu não faço teatro, não conheço isso de dentro, mas creio que o problema tem que ser encarado seriamente e gostaria de vê-lo discutido nos debates após esta conversa.
Dentro do panorama geral dessas 81 peças, tentei fazer uma análise qualitativa. A tendência natural seria supor que essa massa de espetáculos se disporia segundo uma curva de Gauss, com algumas montagens muito boas, uma maioria de razoáveis ou medíocres e algumas muito ruins. Na prática, isso não ocorreu. Houve uns poucos espetáculos excelentes, um pequeno número de medíocres e uma enxurrada de lixo teatral. Mas esse tipo de classificação não basta para dar uma idéia do quadro geral de nosso teatro para crianças. Há nuances e diferenças que agrupam certos subtipos de peças, cuja distinção se faz necessária.
Em primeiro lugar, surge uma categoria muito definida e ilustrada por raros espetáculos — seria mais ou menos o equivalente a um teatro clássico para crianças, encenando de maneira tradicional mas extremamente séria, trazendo aos palcos textos já consagrados por sua qualidade indiscutível, com inegável nível de teatralidade, em seus menores detalhes. Essa tendência é tipicamente pelas montagens do Tablado. Todos os espetáculos de Maria Clara Machado sempre se caracterizam pelo extremo cuidado, pela feitura teatral de alta qualidade, pela convivência com o texto, que se sente que foi prolongada, profunda... Geralmente se faz a Maria Clara a crítica de não estar se renovando, mas acho que ela cumpre perfeitamente o papel que escolheu para si — apresentar peças infantis de qualidade inegável, a partir de bons textos, com muita seriedade e muito entusiasmo pelo teatro infantil. Realmente, as três peças que ela apresentou no ano passado foram remontagens. Mas não me parece que ela esteja se propondo a novidade e a vanguarda. Esse papel de representar o clássico no nosso teatro infantil, ela vem desempenhando, e muito bem.
Além dessa primeira categoria nítida, há várias outras. E houve também este ano um acontecimento que eu considero excepcional, que foi o trabalho do grupo do Ilo Krugli. A consagração do público e da crítica foi total (ele estava me dizendo outro dia que sua História de lenços e ventos já foi vista por 25.000 pessoas) e o reconhecimento da qualidade do que ele vem fazendo é uma coisa que não admite discussão. Eu confesso que isso me assusta um pouco, pela responsabilidade que joga nos ombros de Ilo e de seu grupo. De certo modo, fica todo mundo esperando que o próximo espetáculo seja tão bom quanto ou melhor ainda, num tipo de expectativa que força comparações e que, ao mesmo tempo que mitifica, muitas vezes se prepara para derrubar o mito na próxima esquina, dando-lhe a obrigação de satisfazer a certas categorias ideais — algo não muito distante do que ocorreu com Maria Clara Machado que, após um reconhecimento unânime, passou a uma pichação generalizada. Não pode é haver dúvidas de que o espetáculo do Ilo foi um marco, apesar de uma ou outra restrição que se possa fazer aqui ou ali. Foi da maior importância ter existido agora, e dessa forma, essa História de lenços e ventos, porque, de repente, fomos todos obrigados a ver que o teatro infantil carioca não é mais apenas Maria Clara Machado. O trabalho do grupo do Ilo se tornou o símbolo vivo disso. Um símbolo muito cheio de vitalidade. Acho muito importante compreender que há diversos caminhos, que cada um procura o seu, a sua maneira própria de se expressar, de pôr para fora uma pressão interna. Se for algo de real qualidade artística, vai ter seu lugar.
Estou insistindo muito nisso, porque às vezes há posições que defendem determinadas tendências, procurando excluir as outras. E isso nos introduz a outro tipo de peça, que esteve muito em foco há algum tempo, uns dois anos. Agora parece que ficou meio démodé, já que, como vocês sabem, nisso também tem moda. Agora e expressão corporal, luz negra, acrílico. Há uns dois anos atrás, era o teatro de participação. A criança tinha que participar fisicamente da feitura do espetáculo. A participação emocional não era levada em consideração. Um pouco como se uma das funções do teatro fosse formar torcedores, levar as pessoas a tomar partido e gritar por ele.
Hoje em dia eu não conheço nenhum grupo sério trabalhando no Rio e que ainda dê ênfase a esse tipo de teatro. Os grupos puramente comerciais aprenderam a fórmula, e usam e abusam dela, confundindo participação com delação, correria, gritaria, histeria coletiva, enfim, uma exarcebação gratuita de sentimentos. Posso parecer muito radical, mas considero isso muito perigoso e, em alguns casos, meio criminoso: jogar uma porção de estímulos em cima da criança e, depois, de repente, acabar o espetáculo, mandá-la embora e deixá-la sair num estado de excitacão absoluta, sem saber o que fazer com aquilo tudo que veio à tona. Essa participação de correria e gritos é desorientada, baseada em perguntas do tipo para onde foi? cadê Ele? incentivando a delação e o suborno já que, em muitos casos, os atores prometem dar coisas às crianças em troca de informação.
Nessa linha do teatro de participação, esse é o extremo comercial. Há também outro tipo. Só estou trazendo o assunto para discutir aqui, porque eu quero que a conversa seja muito franca e polêmica. Sei que o tema é delicado, mas acho fundamental que quem faz teatro para crianças se interrogue sobre isso. Esse novo tipo é constituído pelos grupos que fazem um trabalho muito bem intencionado — e raramente resolvido. Em vez da gritaria e da correria, o esquema é outro. A peça vem se desenvolvendo e de repente, pára. As crianças são chamadas ao palco para brincar de roda (talvez 70% dos casos), imitar trenzinho, fazer bandinha. Quebra-se o ritmo do espetáculo, interrompe-se o que vinha se desenvolvendo, para brincar de participar, porque participar é trazer a criança para dentro do espetáculo.
Depois, acaba a hora do recreio. As crianças voltam a seus lugares e o espetáculo continua. Os grupos que fazem esse tipo de trabalho, apesar das boas intenções, não estão preparados para incorporar uma participação real e efetiva da criança, para deixar que ela modifique o curso do espetáculo e não sabem o que fazer se isso ocorrer.
Há ainda vários outros tipos de espetáculo e queria me deter um pouco em uma praga do teatro infantil carioca: a montagem puramente comercial. Temos, no Rio, pelo menos três ou quatro teatros que se especializam nesse tipo de peça para crianças. De tal modo que, quando um grupo mais sério faz temporada neles, encontra um público de bairro ou de quarteirão totalmente viciado, e há um choque que pode ser sério (como a montagem de Senhor Rei, Senhora Rainha no teatro da Praia atestou). Seriam o Miguel Lemos, o Teatro de Bolso, o da Praia e, numa certa medida, o Teresa Raquel. Esse tipo de peça geralmente é muito simples: ou readapta uma história infantil (e vamos já discutir como isso é feito), ou então procura inventar uma história nova. Rigorosamente, obedece ao mesmo esquema: um herói bonzinho mas desobediente, ajudado por um amigo, vai aprender a ter disciplina, escovar os dentes, fazer os deveres de casa, etc. Pelo meio, o falso didatismo se manifesta em aulinhas (pedir taboada à platéia, perguntar capitais). São jogados diante do vilão, mas não há nenhuma relação direta entre essa situação e o comportamento deles, a não ser a desobediência a uma ordem, quase sempre sem sentido. O amigo consegue trazer auxílio, o vilão (geralmente, o lobo) é imobilizado mas não é castigado. Na grande maioria das vezes, "se arrepende" e promete ficar bonzinho, sem nada em todo o comportamento anterior que explicasse porque era mau ou porque ficou bom. Aí entramos em um aspecto muito grave da maioria dos textos de teatro infantil — e não só encenados na Guanabara, mas também concorrendo a concursos, etc. É a de que a criança não pode ser assustada, não pode ter problema, tem que ser colocada numa falsa redoma, é inocente, é meio debilóide... Não pode ser posta diante de um conflito. Então, o conflito é atenuado. Pessoalmente, como espectadora que adora teatro, acho que teatro, em grande parte, ainda é conflito, tensão, dilema, opção, tomada de decisão e de atitude, de ação. A partir do momento em que esse conflito desaparece, em que os personagens não escolhem, o sentido da peça fica diluído. Pica algo vazio, um vasto significado sem significado algum, uma coisa oca, que só significa sua própria vacuidade, o inexistente, a ausência de problemas em jogo. É uma coisa profundamente triste e frustrante, e é o antiteatro, a falta de vida, um espetáculo que não dá à platéia nada para viver e se emocionar. Às vezes a atenuação do conflito é levada a extremos altamente perturbadores, sobretudo nas adaptações de histórias tradicionais. Como o caso dos bruxos sádicos que, no fim, tiram a máscara e revelam que eram os pais das crianças e estavam fingindo de bruxos por amor, para dar uma lição. Ora, se tantas gerações de crianças viveram profundamente esse mito, se essa história adquiriu uma dimensão de mito, é porque ela fala alguma coisa muito profunda, de todos nós, e tem que ser respeitada. Ou se respeita ou se escreve uma nova história, mas não se pode ficar mexendo com isso, diluindo os mitos, mudando sua estrutura, mas mantendo os mesmos personagens.
Esse é um aspecto sério das peças infantis. Não exatamente do texto, mas do enredo. Texto tem muita coisa mais. E, de qualquer modo, o texto ainda não é o espetáculo. É possível que se possa fazer um bom espetáculo, com um texto fraco. Mas, um texto bom ajuda tanto que eu acho que não vale a pena nem perder tempo com um texto fraco. As vezes eu me pergunto vendo uma montagem de um texto horrível que não é produzido pelo próprio autor: "Como é que duas cabeças diferentes conseguiram se interessar por isso?" E, a partir dessa reflexão, eu gostaria de lançar aqui para debate uma pergunta a ser respondida: quais são os critérios pelos quais um grupo que faz teatro infantil seleciona seus textos? É só aquilo que está à mão? É uma responsabilidade muito grande. Como é feita essa seleção? Será que em algum momento, quem escolhe se pergunta qual o significado desse texto, dessa situação, desse personagem, dessa luz, desse ritmo, dessa cor, dessa música, disso que está sendo feito? Nenhum desses elementos é gratuito ou sem significado. "Qual o sentido do que eu estou fazendo?" É uma pergunta fundamental e creio que, às vezes, ela não é feita.


Ana Maria Machado é escritora, jornalista, professora. Curso de Letras Neo-Latinas da URFJ: Pós-Graduação e Lingüística na École Pratique des Hautes Études — Paris. Crítica de Teatro Infantil do Jornal do Brasil. Chefe do Departamento de Rádiojornalismo da Rádio Jornal do Brasil.
________________________________________

Este texto foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975.









# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 4:45 PM


Comentários:



Postar um comentário



<< Home
Conteúdo produzido por Carlos Augusto Nazareth - Design por Putz Design