Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil
Conteúdo Atualizado Semanalmente
Considero dois autores fundamentais para a reflexão acerca de uma escrita de si: Michel Foucault – principalmente com suas considerações sobre os hypomnemata – e Roland Barthes, conhecido pensador das textualidades .
Gosto de pensar a noção de uma escrita de si como o exercício constante de um pensar sobre si mesmo na elaboração que o ato de escrever (-se) viabiliza. É um falar sobre o Eu; um modo, uma forma de constituição do Eu – este o que a escrita sobre si proporciona. Foucault denomina a isto de “escritura etho-poiética”, pois possui uma função poética e engendra uma política de criação de si. Demonstra um compromisso com a vida. É, conforme Foucault, uma tessitura, um amálgama de escrita e leitura, pois incita o mergulho na multiplicidade de materiais de expressão criadora trazidos pelas leituras que se vai fazendo: os fragmentos costurando-se. E, fundamentalmente, a apropriação que se faz disso. “Fazer da recoleção do logos fragmentário e transmitido pelo ensino, a audição ou a leitura, um meio para o estabelecimento de uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível”.
No tocante aos hypomnemata, Foucault inspirou-se, ele mesmo, em uma das duas formas que a escrita sobre si assume na cultura greco-romana (a outra é a correspondência ). Hypomnemata eram os cadernos pessoais contendo citações, fragmentos de obras, pequenas reflexões, ocorrências, frases, relatos e pensamentos que serviam como “aide-mémoire” ao cotidiano; como memórias sobre o escutado, o feito, o lido, o vivido. Utilizados principalmente nas classes cultas, é óbvio, eram como “anotações de vida”.
Hoje se discute muito acerca dos poucos rastros e lastros que a escrita “científica” deixa. O que dificulta conhecermos as implicações, os fios que a teceram e às descobertas científicas; as dúvidas, os impasses que surgiram, os erros, as vitórias alcançadas. São métodos “assépticos e tristes”, neutros e neutralizantes, como conseqüência, que compõem uma memória quase esquecida a que vem registrada e dada a conhecer. São textos que se percorre por obrigação, sem fruição, e que logo depois esquecemos. Textos que não provocam, não nos fazem suspender a cabeça da leitura (Barthes). Talvez porque lhes falte paixão?
Os seus autores deveriam perguntar-se constantemente: essa escrita é do quê? essa escrita é como? essa escrita é para quê? Pois a escrita pode ter uma função etho-poiética, ou melhor, uma função estética e política de criação de si. Um compromisso com a vida, com a potência criadora que habita em nós.
Através da mistura escrita/leitura podemos compor combinatórias com a diversidade dos materiais de expressão trazidos pelas leituras. Foucault menciona o se dobrar, o redobrar (-se) e o se desdobrar em múltiplas afirmações. É necessário haver uma composição das leituras e releituras, das escolhas feitas, dos fragmentos eleitos naquele que escreve e no que escreve. Conectar fragmentos e narrá-los como um todo. Totalidade que está em constante movimento, não cristalizada em conceitos, pré-conceitos, que se enovela, se enrosca com outros logo adiante. Conectar fragmentos criando um estilo de escrita. Ao ser percorrido pelas leituras que se fez, apossar-se delas e fazer sua própria afirmativa. Transmutar-se a partir e por causa deste emaranhado de fragmentos moventes. O surgimento, pois, não de um dito novo, mas de um dito com novo valor.
No atual mercado de bens simbólicos, escrever para não perder. Passar da esfera auditiva para a visual permite reexaminar, reordenar, retificar. Assim, os hypomnemata para mim são como palimpsestos, verdadeiros exercícios de “ruminação construtiva” que a escritura permite, oportunizando uma “escrita dos movimentos interiores” que desemboca certamente numa estética da existência, como queria Foucault. (O exemplo do “Proler Carcerário” de Vitória da Conquista, BA, 1992...)
“Ler é realizar a experiência de se pensar pensando o mundo”. (Eliana Yunes)