Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



segunda-feira, julho 23, 2007


 

SEGUNDA PARTE


Prof. Dra. Nanci Nóbrega



Quando a gente fala dos textos-fonte e desse trabalho – que é verdadeira ação pedagógica, ação histórica, ação cultural –, quando a gente traz uma narrativa da tradição à tona, estamos trabalhando com a questão da memória e a questão do sentido, além de estarmos trabalhando com a potência da palavra.
Portanto, torno a indagar: o que significa Vasalisa?
Dentro dessa compreensão sobre a multidimensionalidade das narrativas fundantes, necessito o tempo inteiro me perguntar o que é Vasalisa; o que ela significa principalmente para mim. Para que eu possa dizer para o outro o que ela é.
Lembro que, antes, o narrar era investido de funções mágicas e a intenção era sempre de operar magicamente o mundo quando, nos ritos, se narrava. O momento do relato, da fala, constituía uma parte imprescindível dos rituais mágico-religiosos. Então, quando se diz “era uma vez” e “não era uma vez” , estamos de novo abrindo a porta desse momento mágico para instalar, instituir, construir um espaço suspenso no tempo, parte de um ritual religioso que proporcionava o almejado religare.
E agora? Será diferente? Digo que não. Quando as cortinas se abrem, é como se estivéssemos num ritual religioso. No momento em que se diz “era uma vez” estamos nos instalando num espaço sagrado, num círculo mágico, onde a palavra vai trazer à tona sua potência e seu sentido. As narrativas que fazem isso são os mitos, as lendas, os contos populares, ou seja, as narrativas da tradição.
O mito é sempre cosmogônico e, portanto, único; transforma o caos em cosmo, oferecendo-nos uma organização do mundo, da vida. A lenda é uma filha do mito; suas características são características históricas, datadas. Essa é a grande diferença entre mito e lenda: na lenda, tempo e espaço são mais delimitados; a lenda, portanto, traz diferenças culturais. O conto possibilita variantes. Por isso, a partir dele são possíveis as adaptações.
Nos contos da tradição há sempre um núcleo temático, um problema. Este núcleo apresenta um rito de iniciação: há as provas, os desafios, os obstáculos, as vitórias; é a representação da jornada do herói. Os contos tradicionais, as narrativas populares seguem uma estrutura linear. Nelas há uma situação inicial estática. Porém o tesouro é que nessa situação inicial estática já está a potência de um conflito. Então, quando a voz diz “era uma vez um castelo, um rei, uma rainha, uma princesa e fadas”, que é aparentemente uma situação de calma, estática, dá início a um suspiro para o que vem a seguir. E o que vem a seguir é sempre uma grande revolução. Porque nas narrativas fundantes, nestes textos-fonte, a verdadeira iniciação é você compreender que nada deve ficar estático: o que está estático, está morto. Então, uma característica fundamental dessas narrativas é a potencialização do movimento. Há sempre como que um suspiro prevendo algo que vai acontecer. É como se estivéssemos em suspenso, atentos a alguma situação que logo vai ser mudada. Eu penso que isso é uma grande “deixa” para a questão da apresentação de uma narrativa em termos teatrais.
Outro elemento importante é o conflito. E a potência do conflito prepara o duelo entre o herói e o vilão. Por favor coloquem a palavra vilão entre aspas porque se oós lembrarmos da nossa grande Baba Yaga, veremos como ela é fundamental na potencialização do conflito. É o vilão que instala o fazer transformador. Se não houvesse a bruxa Baba Yaga, o vilão, esse movimento não se daria e estaríamos no melhor dos “mundos”, aquele sem graça. Então, a bruxa, a feiticeira, esse elemento que aparentemente é do mal, mas que traz em si potencialmente o bem (porque no mínimo é ele que vai fazer a transformação ser possível de acontecer), então, ele é instrumento fundamental para a mudança, para a transformação.
Nos textos-fonte, aqueles que têm uma estrutura linear, mais simples, a narrativa começa por um estado de carência, que põe a personagem num estado de tensão, já que não há estabilidade que perdure se, internamente, não há realização, se o potencial subjetivo é reprimido ou camuflado. Por isso a instabilidade é benfazeja e instrumental para potencializar a estabilidade inicial. Louvemos, pois, o chamado “vilão”, o “mal”, a “bruxa”. Nossa Baba Yaga. De igual modo acontece também em termos coletivos. Assim, são necessárias as histórias do mal com seus vilões para que a sociedade se movimente, para que a sociedade não solidifique um estado estático, não se cristalize e, assim, não morra. O estado de tensão e a bruxa, portanto, são riquezas também para o coletivo.
Uso Propp e seu Morfologia do conto maravilhoso, onde criou uma estrutura básica em termos das narrativas da cultura popular. A partir delas, que apresentavam uma estrutura linear, ele pensou três funções, ligando-as entre si. É fundamental, então, que esses sintagmas narrativos, esses pedacinhos da narrativa fiquem ligados entre si por um movimento de causalidade a fim de fazer alguma coisa acontecer, para colocar a história em movimento.
Propp estabeleceu uma estruturação muito sofisticada, então vamos aqui resumir assim: toda história da tradição apresenta uma estrutura simples, linear com início, meio e fim.
Como início um estado de equilíbrio, onde acontece a apresentação, e onde o tempo e o espaço são tempo e espaço outros. É num mundo outro, num mundo que está ao lado, numa outra realidade, num mundo entre mundos que a história acontece. Sendo assim, não há indeterminação, o tempo/espaço é completamente determinado. O ouvinte/leitor é levantado, é suspenso, é posto lá. É através desse mundo outro onde é colocado, que ele passa a pensar as questões da vida. Então, nesse cenário aparecem os personagens, a situação, a apresentação geral para iniciar a história que se conta.
Na narrativa há sempre a intervenção de uma força e esta força traz um conflito que desenvolve a ação: as provas do herói, os desafios, as jornadas que se constroem no meio da narrativa. Assim vamos chegando a um fim que contém em si um clímax onde se é levado nas asas desse tempo outro que pára e vai levantando a alma e o corpo do ouvinte/leitor que vai ficando na ponta do pé.
Quando se está completamente “esticado” – isto é o clímax. Então o fim: aquele suspiro porque o equilíbrio perdido inicialmente foi recuperado. Já podemos finalizar a jornada.
Há dois tipos de final da história nas narrativas. Vasalisa nos aponta esta questão boa para o nosso debate. Nós temos dois tipos de fins: um deles é o conhecido “e foram felizes para sempre” com ponto de exclamação. Mas há também, e este é o caso de Vasalisa, aquele fim que é um ponto de interrogação. Nos perguntamos assim que a história se cala: e agora? O fascínio por Vasalisa, sua longevidade, por assim dizer, na minha coompreensão vem muito daí, deste final inacabado, deste trabalho de interação que o ouvinte/leitor precisa fazer: e agora?... Eis um ponto apaixonante desta história. É dito pelo junguianos, pelos estudiosos da área Psi que Vasalisa é uma bênção, pois numa narrativa cujo tema gira em torno da questão da intuição, um final desses é uma bênção. O final da história de Vasalisa é o corolário dessa questão da intuição. A narrativa entrega para nós a continuação: e agora?... A gente põe no bolso, tal como a menina faz com sua boneca, e pergunta: acaba assim, ou acaba assado? Vem aqui ou vai ali? Faço isso ou faço aquilo? E cabe a cada um a decisão tomada pela força intuitiva que se tem, ou não. Por isso esta narrativa é rica e persiste através dos tempos. Esse fio suspenso que segue o princípio de que era uma vez e não era uma vez, veio exatamente assim de estar na história não como um fim que põe um ponto final, cristalizador. Por isso é tão rico.
Nossa conversa tem um bom motivo: estamos dialogando sobre uma adaptação de Vasalisa para o teatro. Então, precisamos dessa voz, que é a alma, a voz do teatro, a alma do teatro. Como tudo o que refleti para esta nossa conversa foi apoiado num texto escrito – a narrativa de Vasalisa pesquisada no livro da Estés, então, Vasalisa é um texto que está esperando ser vivificado por vocês na leitura dramatizada que se seguirá a esta breve palestra. Deste modo, eu trabalhei muito com o reconto, assemelhando seus procedimentos aos procedimentos de uma adaptação para a linguagem dramática.
O que é um reconto? É um processo de apropriação e reconstrução de contos tradicionais. Atentem para estas duas palavras: apropriação e reconstrução. E é para isto que estou chamando atenção aqui, hoje. É fundamental que nos lembremos que eu estou falando do adjetivo fundante. Se eu digo história, conto, e, ao mesmo tempo, adjetivo-as de fundantes, narrativas fundantes, esse adjetivo então é fundamental. Nesse sentido, não estou me apropriando, para reconstruir, de qualquer narrativa. Mas de uma narrativa que nos constrói, que vem nos construindo como seres singulares que somos, como subjetividades e também como coletivo. Nesse sentido, a grande questão é: como vamos nos apropriar disso e o que é que se vai reconstruir?
No mínimo isso é uma prática complexa de construção de sentido. Não se pode fazer uma reprodução passiva, é preciso elaborar uma construção a partir dos elementos significativos da história. Para obedecer à terminologia da Estés, que ossos são esses que eu encontrei para fazer com que vivam de novo? Na minha fala, no meu texto, no meu reconto, o que eu vou fazer, achando os ossos da narrativa escolhida, é detectar, reproduzir, produzir, construir, verificando se eles estão preservados. Pois eles são os fios ideológicos existenciais subjacentes do conto tradicional.
Toda narrativa fundante tem subjacentes raízes, arquétipos; ela tem este núcleo problemático existencial, portanto, ela tem um fio ideológico .
(TERCEIRA E ÚLTIMA PARETE NA PROXIMA SEGUNDA FEIRA)


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 7:14 PM


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