Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

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domingo, junho 08, 2008


 

O TEATRO - PERSPECTIVAS



por Carlos Moreno


No estudo de uma peça de teatro, da perspectiva literária, interessa especificamente o texto, bem mais do que o espetáculo em que este se concretiza. Analisado como objeto de código lingüístico, o texto de teatro passa, então, a ser considerado em termos de diálogo e indicações cênicas. Outra questão fundamental na análise do texto de teatro é a caracterização da obra selecionada quanto ao gênero. Senhora dos Afogados, por exemplo, é denominada tragédia por seu próprio autor, Nelson Rodrigues. Na tentativa de compreender tal gênero, é recordada também a definição aristotélica. Há quem negue a possibilidade da tragédia no mundo moderno. Mas a luta do herói trágico contra forças poderosas, originalmente ligadas ao arbítrio divino, teria sido substituída hoje em dia: os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria falha interior.
No estudo de uma peça de teatro, da perspectiva literária, interessa especificamente o texto, bem mais do que o espetáculo em que este se concretiza. De qualquer forma, a leitura de um texto teatral supõe pelo menos a construção de uma representação imaginária, já que o teatro, como indica Anne Übersfeld, é uma prática cênica e não um mero gênero literário [1]. Analisado como objeto de código lingüístico, o texto de teatro passa a ser considerado em termos de diálogo e indicações cênicas.
Sobre a experiência teatral, comenta Maria do Carmo Peixoto Pandolfo:
O teatro (etimologicamente "lugar de onde se vê") conjuga recitantes e espectadores numa identificação espiritual e readquire assim a acepção originária de local privilegiado onde se desenrola um rito religioso [2].
Aristóteles, na Poética, distingue a mimese "na forma narrativa" daquela em que as "pessoas agem e obram diretamente", ou seja, em que se processa a representação da ação (em gr. drama). O que aqui recolhemos desta distinção vem a ser o embate dos diálogos, a que se acrescentam, não menos importantes, o não-dito e o silêncio. Senhora dos Afogados (SA), por exemplo, é denominada "tragédia" por seu próprio autor, Nelson Rodrigues (NR). Na tentativa de compreender tal gênero, vale recordar a definição aristotélica:
A tragédia é a imitação de uma ação séria e completa em si mesma, de certa extensão; em linguagem tornada agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; em uma forma dramática, não numa forma narrativa; com incidentes que suscitam a compaixão e o terror, para obter a purificação de tais emoções [3].
Segundo Junito de Souza Brandão, a teoria da mimese e da catarse é o instrumento empregado por Aristóteles para separar a arte da moral [4]. Embora o mito em sua forma bruta seja a matéria-prima da tragédia, ela é “imitação (mimese) das realidades dolorosas, que são poeticamente apresentadas”, passando, assim, para um outro plano, próprio da realidade artificial que constitui a arte. Paralelamente, como "Catarse, kátharsis, significa na linguagem médica grega, de que se originou, purgação, purificação"[5], a tragédia alivia com o terror e a piedade a matéria bruta dos mitos para torná-los esteticamente operantes. Em SA, de modo semelhante, a brutalidade na abordagem da questão do incesto é aliviada pelo processamento artístico.
Graças ao equilíbrio estabelecido pelo poeta, "a tragédia 'purificada' vai provocar no espectador sentimentos compatíveis com a razão" [6]. O próprio NR procura conferir um caráter aristotélico a seu teatro, quando explica por que a “ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz”:
O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós[7].
Em Aristóteles, o herói trágico é o homem que cai no infortúnio, não por ser perverso e vil, mas por causa de algum erro [8]. Assim, a reviravolta na fortuna do herói não deve nascer de uma deficiência moral, mas de grave falta cometida. Entretanto, tal transformação não implica necessariamente num desfecho infeliz para a tragédia. O transe da infelicidade para a felicidade é nela admitido[9]. Nesse sentido, é possível distinguir o “conflito trágico fechado”, em que há a passagem da ventura à desdita, como em Antígona, da “situação trágica”, em que a mudança é da desventura à felicidade, como na Oréstia[10]. Junito de Souza Brandão explica que “o trágico pode não estar no fecho, mas no corpo” da peça:
Chamamos, por isso mesmo, tragédia à peça cujo conteúdo é trágico e não necessariamente o fecho [11].
O conteúdo da tragédia talvez possa ser relacionado ao sentimento trágico da vida, definido por Miguel de Unamuno como “ponto de partida pessoal e afetivo de toda a filosofia e de toda a religião” [12]. Nesse sentido, o pensador discute a condição humana:
O homem - diz-se - é um animal racional. Não sei por que não tem sido chamado um animal afetivo ou sentimental. E talvez até que o que mais o diferencie dos outros animais seja o sentimento e não a razão [13] .
Por outro lado, Jean-Marie Domenach comenta que o delírio passional é incapaz de constituir a tragédia se outros elementos não intervêm, já que a linguagem trágica não apenas obseda o personagem, aprisionando-o em sua paixão, mas também serve para distanciá-lo de si mesmo, fazendo surgir “sob o eu passional um ser mais profundo, uma lucidez que está além da consciência ou da inconsciência” [14].
A tragédia, segundo Domenach, está, portanto, ligada a um equilíbrio de sombra e luz, de consciência e perda de si, oscilando entre dois extremos aparentemente contraditórios. De um lado, a falta inconsciente e a punição desmerecida, ou seja, a atmosfera pesada e fechada da fatalidade; de outro, um mundo, de aparência brilhante mas enganosa, de liberdades heróicas, exaltado de honra e de sacrifício:
O mistério trágico é constituído quando se misturam um ao outro os dois elementos, na sua maior pureza e na sua mais estreita unidade: o querer humano e a essência inumana da fatalidade [15].
De acordo com Domenach, o trágico corresponde ao “pressentimento de uma culpabilidade sem causas precisas e de que, no entanto, a evidência não é propriamente discutida” [16]. Segundo o pensador, o trágico não se confunde com a tragédia, mas é ela que nos permite caracterizá-lo:
Para que o trágico se manifeste, é necessário que um dispositivo metafísico duplique o dispositivo humano, e que uma depuração se produza, atraindo a transfiguração característica da tragédia [17].
Segundo Pandolfo, a tragédia grega surge precisamente quando o herói mítico deixa de ser modelo para constituir-se em problema, pois "ela confronta, graças ao racionalismo nascente, os valores tradicionais veiculados pelas narrativas míticas com as novas práticas sociais e religiosas da época (século V. a.C.)" [18]. Tal tensão aparece na própria estrutura da tragédia: ao coro, “personagem coletivo, anônimo”, se opõe o herói do passado, “personagem individualizado, de condição nobre”:
O próprio personagem trágico se constrói na tensão dialética estabelecida entre a intencionalidade do ato, decorrente do exercício da liberdade humana (ETHOS), e a injunção do destino, fixado pelos deuses, e que se perde em uma anterioridade sempre presente (DAIMON). Por isso é agente e paciente, culpado e inocente, lúcido e incapaz de compreender, dominador e dominado. Para Vernant, a essência do trágico decorre da coexistência destas duas forças, da simultaneidade destas duas pulsões [19].
O gênero trágico é, em resumo, caracterizado pelo uso da máscara, signo da metamorfose, pelo coro, representante da coletividade dos cidadãos, e pela ação do herói [20]. Além disso, deve haver um acontecimento aterrorizante, “representado pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o regicídio” [21].
Gerd Bornheim vê o teatro ocidental fundamentado em duas estéticas distintas, sendo que a primeira é a formulada por Aristóteles, e a segunda é a que caracteriza o teatro medieval, os elizabetanos e o Século de Ouro espanhol basicamente [22]. Para ele, as duas estéticas coincidem no princípio da imitação e na finalidade do teatro (a catarse), mas divergem no modo como entendem a estruturação do texto:
Os medievais entendem o texto de modo mais solto, composto de cenas mais ou menos independentes e cuja ordem pode até ser modificada. Um exemplo disso, existente ainda hoje, é a via sacra: cada estação é uma pequena peça que quase vale por si. Já Aristóteles entendia o teatro com um rigor bem maior; para ele uma peça tinha que ser um todo completo e fechado em si mesmo. Aristóteles postula a unidade de ação, e essa unidade se desdobra em atos que ocupam um lugar exato e que correspondem ao princípio, ao meio e ao fim da ação [23].
A partir de Aristóteles, os textos teatrais são considerados como filiados aos gêneros básicos da tragédia e da comédia. Contudo, no prefácio de Cromwell, manifesto estético do romantismo, Victor Hugo preceitua a adoção de um texto que passa naturalmente da comédia à tragédia, do sublime ao grotesco:
"Preferiu-se denominar drama esse novo gênero compósito, e daí por diante o teatro desrespeitou sem pejo as classificações tradicionais" [24].
Magaldi aponta que há quem negue a possibilidade da tragédia no mundo moderno, uma vez que a partir do cristianismo se desenvolveu a idéia do livre-arbítrio, incompatível com os postulados da religião grega [25]. A luta do herói trágico contra forças poderosas, originalmente ligadas ao arbítrio divino, teria sido substituída hoje em dia:
Os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria falha interior [26].
Dentro dessa acepção ampla é que, segundo o crítico, poderiam ser consideradas tragédias, por exemplo, Electra enlutada, de Eugene O’Neill, e A morte de um caixeiro-viajante, de Arthur Miller. Quanto às rodriguianas SA, Álbum de família (AF), Anjo negro (NA) e Dorotéia (D), Magaldi comenta que sua substância mítica as inclui necessariamente no gênero trágico, sendo que, nelas, a fatalização estaria no relacionamento familiar [27]. De qualquer forma, ele assinala que, liberto da fatalidade, o drama, compreendendo as peças consideradas sérias, seria mais condizente com os conflitos do cristão, que podem ser resolvidos pelo arrependimento e pela penitência [28]. Por outro lado, afirma que o teatro de hoje procura “refletir, até nos gêneros, a dissociação do homem contemporâneo [29]. Já Domenach situa da seguinte forma o nascimento e a evolução do gênero trágico:
A tragédia começou logo que os deuses da Grécia emigraram para o Olimpo, e o ciclo trágico se reabriu com a morte do Deus dos cristãos. De novo os homens se revoltaram, tentaram se apropriar dos poderes divinos. Então, eles se chocaram contra o destino, conheceram seus limites. Procuraram escapar à obsessão da culpabilidade, que era neles como a presença negativa de Deus. O momento de agir chegou. Matar Deus é erigir o homem, mas é também ressuscitar um Deus de rosto desconhecido[30].

Carlos Moreno é Doutor em Semiologia (Letras) pela UFRJ e Professor do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da UERJ
Bibliografia
• BORNHEIM, Gerd. Teatro: a cena dividida. Porto Alegre: L&PM, 1983. 126 p.
• BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1985. 120 p.
• COSTA, Lígia Militz da Costa, REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia; estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988.80 p.
• MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1991. 126 p.
• • UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. Porto: Editora Educação Nacional, 1953. 392 p.


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 8:24 PM


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