Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



sábado, março 25, 2006


 

O que é beleza, afinal ?



por Marcos Nahr



Quem lida com criação deve entender como cognição e emoção estão unidas na experiência estética.

Todos concordam que uma “fórmula” ideal é o equilíbrio entre conhecimento e estética. Sabemos que a estética desempenha um papel extremamente importante.

De fato, a questão sobre o que é ou não belo influencia diretamente muitos aspectos de nossa vida. Em seu livro O que é belo?, Gábor Paál tenta localizar este conceito em meio à estética e o conhecimento.

Enquanto os filósofos a relacionam principalmente com a arte e os psicólogos a vêem como pura sensação de prazer, para o leigo estética é pura questão de gosto.

A biologia evolutiva explica que os "ideais de beleza", pela vantagem seletiva que proporcionam, ficaram programados de algum modo em nosso patrimônio genético. É fato comprovado que as pessoas acham mais agradáveis regiões fluviais e lugares com vegetação verde e exuberante que desertos e montanhas escarpadas. Para nossos antepassados, viver naquelas áreas representava uma vantagem, pela facilidade de conseguir alimento e água e porque ofereciam defesa contra seus inimigos.

A psicologia experimental por sua vez deu origem também ao chamado campo da estética informacional. Pesquisadores demonstraram serem os padrões gráficos os que estimulam a capacidade investigativa do observador, isto é, aqueles capazes de despertar sua curiosidade.

Equilíbrio parece ser a palavra chave quando o assunto é estética. Figuras muito simples são monótonas; as muito complexas surgem como uma massa confusa que não desperta interesse. As figuras consideradas mais atraentes pela maioria das pessoas têm exatamente o nível de complexidade capaz de produzir no aparelho perceptivo estruturas de ordem superior, também chamadas de "supersignos".

Ou seja, um padrão dotado de beleza é caracterizado por um ótimo grau de densidade informacional.

Alexander Baumgarten, fundador da estética moderna, definiu a experiência estética como a forma "sensível" do conhecimento – em oposição à forma "racional-conceitual". Para ele o belo representaria o pólo oposto da razão.

Já Nelson Goodman, filósofo americano, em seu livro Languages of art, censurava essa separação estrita entre as esferas cognitiva e emocional afirmando que: "Colocamos, de um lado, impressões dos sentidos, percepções, deduções, hipóteses, fatos e verdade; de outro, prazer, dor, interesse, satisfação, reações emocionais, simpatia e aversão. Com isso tornamo-nos incapazes de perceber que as emoções funcionam cognitivamente na experiência estética".

Se a cognição e a emoção estão tão unidas, não faz sentido separá-las na experiência estética. Aquilo que nós consideramos belo não é sempre racional, embora a pura racionalidade possa ser muito bela. Mas uma coisa é certa, a eficiência e a elegância estão extremamente ligadas.

No entanto, apesar desta união entre emoção e cognição, existe uma diferença marcante: enquanto a alegria e o contentamento são sentimentos nebulosos, em parte inconscientes, de natureza visceral e não refletida, a experiência estética é mais consciente.

Podemos na maior parte das vezes identificar muito claramente o objeto que consideramos belo, algo que não ocorre com o sentimento de bem-estar, que percebemos de forma difusa.

Isso torna ainda mais difícil responder à questão sobre o significado do belo.

Apesar disto, vamos fazer uma tentativa. Vamos pensar em um objeto estético de qualquer espécie – uma interface, uma escultura, uma teoria científica, uma paisagem –apenas como um modelo formado por elementos individuais relacionados entre si.

A questão é: como deve estar arranjado esse modelo, como devemos percebê-lo, para julgá-lo belo?

Com este procedimento, praticamente todos os fenômenos de experiência estética descritos pela psicologia experimental podem ser classificados em quatro categorias:

1. Beleza do primeiro tipo. Surge das relações dos elementos no interior de um modelo. Essas propriedades são a coerência, a simetria, o equilíbrio, a clareza, a simplicidade, a harmonia, a elegância, a unidade, a continuidade e – talvez o mais importante – a adequação. Descrevem um certo tipo de ordem no interior de um modelo.

2. Beleza do segundo tipo. Refere-se menos a um objeto e mais a uma relação pessoal entre o objeto e quem o contempla. Ou seja, ligação, familiaridade, confiança, empatia, ou a possibilidade de participar pessoalmente de algo. Pensamentos e objetos adquirem valor estético quando nos tocam pessoalmente, nos emocionam, quando refletem algo de nós, quando nos identificamos com eles de alguma forma, ou projetamos neles nossos pensamentos e emoções.

A beleza do segundo tipo está na base de fenômenos tão distintos como a simpatia, a sensação de pertencer a um lugar e também nossa predileção por teorias e idéias de acordo com nossa visão de mundo. Além disso, não é simplesmente a familiaridade que produz o valor estético, mas uma particular mistura do novo e do familiar.

3. Beleza do terceiro tipo. Os critérios de beleza são estímulo, excitação, novidade, complexidade, mas também criatividade. É belo sentir-se criativo. A beleza não refere apenas a objetos, mas também a ações. Pode ser belo fazer novas descobertas, produzir arte, escrever livros, ou expressar as próprias idéias. A beleza dessas ações não depende tanto de o objeto produzido ter sido belo: a questão mais importante é se lidar com esse objeto foi uma experiência estimulante.

4. Estética elementar. Esta é a categoria que melhor corresponde à concepção da beleza como experiência sensorial e sensação de prazer. Nossa preferência por sons harmônicos, paisagens fluviais, rostos simétricos ou corpos bem moldados faz parte desta categoria. A característica central das teorias da estética elementar é que os objetos não possuem nenhum caráter simbólico adicional. Uma rosa, nesse aspecto, é realmente uma rosa, não um sinal de afeto, nem um símbolo romântico, nem uma metáfora para o florescimento e a decadência.

Estas quatro categorias nos ajudam a descrever as sensações estéticas em toda sua amplitude e, ao mesmo tempo em que nos fornecem uma nomenclatura para valores de beleza, deixam espaço para preferências individuais.

Este sistema de classificação dos valores estéticos tem também uma utilidade prática para todos os que lidam com a produção e divulgação de conhecimentos. Designers, artistas, jornalistas, publicitários, pedagogos ou cientistas podem e devem levar em conta os valores estéticos fundamentais, de forma consciente ou puramente intuitiva.

[Publicado no site Webinsider, autorizado pelo autor para o blog vertente cultural]


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 7:00 AM 13 Comentários



terça-feira, março 14, 2006


 

O IMAGINÁRIO LOBATIANO



por Arthur da Távola



MONTEIRO LOBATO: O IMAGINÁRIO
"De escrever para marmanjos, já enjoei. Bichos sem graça. Mas, para as crianças, um livro é todo um mundo. Ainda acabo fazendo livros onde nossas crianças possam morar, como morei no "Robinson" e nos "Filhos do Capitão Grant".
Esta declaração, de José Bento Monteiro Lobato, feita em 1926, cinco anos depois do lançamento de sua primeira obra infantil, "Reinações de Narizinho", era bastante profética. Até praticamente a década de 80, as crianças continuaram lendo e "morando" nas suas obras. Pesquisa feita em 1974, demonstrou que 140 em 200 crianças preferiam as obras de Monteiro Lobato às historinhas de Walt Disney. Levada para a televisão em meados da década de 70, outra obra sua, "O Sítio do Picapau Amarelo", veio confirmar essa preferência. Hoje, 1996, não sei se o resultado seria o mesmo. A tevê e os novos livros infantis gradativamente engolem Lobato.
Com ele surgiu uma literatura brasileira para crianças que até então tinham que se conformar com histórias de príncipes e princesas encantadas, com nomes estrangeiros de difícil pronúncia. Anticonvencional por natureza e com idéias avançadas para sua época, Monteiro Lobato criou um mundo de faz-de-conta, onde realidade e sonho não tinham fronteiras definidas, e o pó de pirlimpimpim era tão aceito e digno de crédito quanto os célebres bolinhos da Tia Nastácia, devorados pelos habitantes do Sítio do Picapau Amarelo.
Embora Monteiro Lobato reconhecesse não haver uma fórmula definida de sucesso para um livro infantil - "Entram em cena imponderáveis inapreensíveis" -, ele sabia que "um menino ou uma menina não é um homem ou uma mulher em idade reduzida". E reformulando a pedagogia da sua época, o escritor afasta então, o misticismo, a superstição, a fantasia mórbida, que embalaram o pensamento brasileiro durante séculos. Para surpresa geral, demonstra para seus pequenos leitores que "a inteligência bem orientada acaba sempre vencendo a força bruta"; e que "um plano bem executado vale mil vezes mais do que o mais potente dos muques". Acima de tudo, seus livros tinham como objetivo ensinar a criança a ter raciocínio próprio e visão crítica do mundo.
Por meio dos personagens do Sítio do Picapau-Amarelo - "um refúgio paradisíaco, onde não bate geada, não há fogo-de-mato, nem broca de café, nem exploração de caboclo" - Monteiro Lobato revelava sua visão de mundo. "Inconveniente" e franca, Emília, uma boneca de trapos, diz sempre a verdade, "pois nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir"; o Visconde de Sabugosa, apesar de sábio e pedante, verdadeiro rato de biblioteca e desligado da vida, sabe das coisas e as antecipa, como, por exemplo, numa época em que ninguém acreditava na existência de petróleo no Brasil (com exceção de Monteiro Lobato, é claro) "descobrir" um poço no Sítio; Pedrinho e Narizinho são a infância normal e livre; Dona Benta, a avó sonhada por todos, "expõe invariavelmente os fatos com absoluta clareza e sempre na ordem direta".
No decorrer de 22 livros, o escritor contou, com seu modo descontraído e saboroso, fatos mitológicos, políticos, sociais, históricos, científicos; ensinou matemática, português, geografia, astronomia. E mesmo escrevendo para crianças, manteve o estilo da sua obra para adultos - claro e objetivo - acrescentando-lhe uma abertura para subverter as regras da gramática e do dicionário. Com desprezo absoluto pelos "sábios cascudos", reagia contra a etimologia e contra os acentos. Explicava existir "uma lei natural que orientava a evolução de todas as línguas: a lei do menor esforço." Segundo Lobato, "esta lei conduz à simplificação e jamais à complicação como os acentos a torto e a direito".
Livres (e livros), tanto em estilo quanto em inspiração, as obras para crianças de Monteiro Lobato foram em certa época perseguidas por alguns educadores e pedagogos tacanhos. Na verdade, a Emília, inconveniente e franca - e com muito do próprio Monteiro Lobato - não podia agradar a espíritos conservadores. Muito menos Dona Benta, com a sua lucidez não repressora, ou qualquer outros dos personagens - Tia Nastácia, a cozinheira; o Marquês de Racibó, um porco falante; o rinoceronte Quindim; Pedrinho e Narizinho; e o Visconde de Sabugosa. Também os setores ultraconservadores da Igreja Católica atacaram Lobato atribuindo-lhe ateísmo de concepção ao dar "vida" a bonecas de pano e a sabugos de milho.
A BOA NOVA: DEIXAR A CRIANÇA COMPLETAR
Na dinâmica dos personagens de Monteiro Lobato cabe à fantasia da criança-leitora (e depois, telespectadora) um espaço ativo de criação, ou, se preferem, complementação criativa frente aos personagens. Lobato comprovou que uma boneca de pano ou um sabugo de milho (Emília ou o Visconde de Sabugosa) são ricos de criatividade para as crianças, exatamente porque incompletos como forma.
A boneca de pano, velha, amassada, mal feita, permite à criança inusitadas "encarnações" ou "personalizações" muito mais ricas e criativas que os brinquedos acabados, perfeitos, que dizem mamãe, sabem "mamar" e até fazem "xixi" para trocar a fraldinha, como anos depois, o progresso industrial criou para as meninas.
Uma espiga de milho, com toda a sua carga simbólica, estimula a fantasia infantil (pois serve para mil coisas nas brincadeiras) mais que o produto industrial completo e acabado, deslumbrante, mas deixando pouco ou nenhum espaço para a complementação criativa da criança. Brinquedos ou bonecos, por mais bonitos e sofisticados que sejam, quando englobam todas as mensagens, signos e símbolos, paradoxalmente empobrecem a relação da criança com o próprio imaginário. Felizmente o computador, de certa maneira, o desperta e liberta. Como o livro ou o rádio. Este, muito pouco utilizado para crianças no Brasil.
Um time de botões acaba por ser mais usado que o trem elétrico, exatamente porque cada uso implica novas mensagens e surpresas. O sofisticado é deslumbrante para a criança na hora de ganhar; depois, porém, reduz-se o nível de interesse porque a mensagem se esgota no breve uso: não o transcende, como ocorre em "invenções" semi-acabadas, toscas, ajustadas ou feitas pelas crianças. É claro que o brinquedo industrial tem e pode ter outras qualidades. É que da eletrônica em diante, brinquedos industrializados recuperaram parte de seu efeito criativo e ativadores tanto do imaginário como do raciocínio.
Lobato alcançou intuitivamente o efeito do acima descrito, (pois viveu num Brasil pré-industrial, época em que brinquedo sofisticado só o importado e para crianças ricas). Daí haver criado na boneca de pano e no sabugo do milho alguns personagens em permanente fazer-se, incompletos, espécie de fetichismo às avessas.
O UNIVERSO DE LOBATO
Tanto há obras de Lobato nas quais o interesse de ensinar através das aventuras deliciosas é dominante, como outras nas quais predominam distração e entretenimento. Aqui ressalta-se o aspecto educativo indireto, talvez o mais poderoso. É através das aventuras, brincadeiras e "reinações" que os valores éticos, culturais, comportamentais e espirituais vão se instalando. Este é o lado basicamente educativo de Lobato.
Renato J. C. Pacheco, em ótimo estudo publicado há anos na "Revista Brasiliense", dividiu o caráter educacional de Lobato em três tipos de obras a que chamou: "De instrução", "Mistas" e "De diversão". E assim catalogou seus livros:
Obras de instrução - "História do mundo para crianças"; "Emília no País da Gramática"; "Aritmética da Emília"; "História das Invenções"; "Geografia de Dona Benta"; "O poço do Visconde"; "Serões de Dona Benta"; e "O espanto das Gentes".
Obras mistas - "Fábulas"; "Viagem ao céu"; "Aventuras de Hans Staden"; "Peter Pan" e "Dom Quixote"; "Minotauro" e "Os 12 trabalhos de Hércules".
Obras de diversão - "Reinações de Narizinho"; "O Saci" (Mitologia Brasileira); "As caçadas de Pedrinho"; "Memórias de Emília"; "Histórias de Tia Anastácia"; "Picapau Amarelo"; "A chave do tamanho"; "A reforma da natureza"; e "Histórias diversas" (última obra de Lobato).
Sirvo-me da divisão de Renato Pacheco para demonstrar que anos depois, na versão televisiva da obra Lobatiana, foram preferidas as obras "mistas" e de "diversão". Pretendeu, portanto, a televisão, enfocar o Lobato educador mais que ao Lobato professor, instrutor. Eram tempos em que a televisão ainda realizava algo ao mesmo tempo divertido e útil.
Fazer predominar o equilíbrio entre a diversão e a instrução, mostra que a decisão pedagógica do grupo encarregado de telencenar Lobato foi a de operar sobre a idéia de educação da sensibilidade e da cidadania como prioritária e melhor condutora dos valores de vida. Tivesse a opção sido "ensinativa" ou "instrucionista" e seguramente teríamos chegado ao segundo ano de programa com um desinteresse cruel ou um didatismo sob todas as formas condenável em televisão. O programa alcançou nove anos com crescente interesse, apesar de maus horários. E anos depois, em plena década de 90 a TV-E continuou a apresentar teipes do "Sítio".
Não se pense que a opção pelo caráter "diversão" é pouco educativa! O caráter educativo, via diversão, está implícito mas incisivo nos valores de vida daquele grupo em suas aventuras e descobertas e não no eventual sentido "didático" das mesmas.
Abaixo enumero alguns conteúdos do universo educativo do Lobato não instrutivo, ou seja, o do Lobato divertido. Procuro demonstrar que tais conteúdos também estiveram presentes na maioria dos episódios televisuais do "Sítio", principalmente nos primeiros, quando o programa era mais Lobato. Mesmo assim, mesmo em histórias criadas por competentes roteiristas apenas baseadas em Lobato, o cerne dos conteúdos (abaixo discriminados) essenciais no universo do consagrado autor foi respeitado.
1) Brasilidade da obra - Este conteúdo basilar dos livros esteve presente na televisão. O Brasil em essência, fala, lendas, comportamentos, valores, cenários, músicas, tudo é muito Brasil em Lobato.
2) Ausência de repressão paterna - Nas obras de Lobato não há a presença de pai e mãe como símbolos também de limitação, castração ou educação repressora. A avó permite a manutenção dos valores dos pais sem os rigores naturais destes. Essa característica da psicologia Lobatiana não faltou à versão televisiva, na qual, aliás, a figura de Dona Benta foi exponencial também pelo valor artístico (amor, emoção, equilíbrio, sensatez) da atriz Zilca Salaberry.
3) Exata dosagem entre realidade e fantasia - Seja pela possibilidade do faz-de-conta da Emília, pelo pó de pirlimpimpim (retirado da versão televisual devido a possível analogia com tóxicos); seja pelo fato de que no "Sítio" os sabugos de milho, as bonecas de pano e alguns outros animais tornam-se gente, o fato é que na obra de Lobato a fantasia se mescla a acendrado rigor realista (o Visconde é um cientista e Dona Benta é um permanente apelo à realidade e ao bom senso).
4) Integração social e racial - Todo o grupo do "Sítio" convive em integração racial e social. Lobato colocou todos os grupos sociais e étnicos possíveis numa fazenda do interior do Brasil, operando preciso corte sociológico. Não há preconceito de classe ou de cor, ali, salvo nas formas ocultas mas presentes em qualquer microgrupo da sociedade global. A integração do elemento negro é perfeita através de Tia Anastácia, uma pessoa "da família" e um dos pontais afetivos do grupo.
O mais interessante, do ponto de vista sociológico, é a presença viva do elemento negro da obra Lobatiana (Tia Nastácia, Tio Barnabé, Garnizé e o Saci) com a sua força de cultura ancestral, não sendo tratada na obra como subcultura ou cultura dominada. Ele coexiste com a cultura branca dominante, aportando suas "verdades" sem restrição. Na televisão deu-se o mesmo.
5) Contraponto entre o saber racional, intuitivo e mágico. O centro da (intuitiva e genial) pedagogia lobatiana reside no contraponto das três formas do saber em permanente conflito dentro do ser humano: o saber racional, o intuitivo e o mágico. Cada personagem representa um deles: Visconde de Sabugosa, o racional; Emília, o intuitivo; Tia Anastácia, Saci e Tio Barnabé, o saber mágico, todos coordenados pelo conhecimento que, diferente do saber (que é seletivo e excludente), é integrador. E, como os três compõem o ser humano, ele se integram na representação do Conhecimento que é Dona Benta. Conhecimento entendido aqui como a capacidade de integrar dados dos vários saberes. É síntese e consenso, mais um coordenador de saberes que um descobridor. Cada forma de saber representa uma possível interpretação da realidade. Na medida em que fluem as três dentro da obra de Lobato e há um fator de Conhecimento que as integra e aceita, a criança é naturalmente levada a experimentar todas, aceitando-as sem preconceitos. A figura arquetípica de Dona Benta (arquétipo do "velho sábio") simboliza tal integração.
Figuras como Tia Anastácia, Saci, Tio Barnabé, Garnizé, Zé Carneiro (um acréscimo da TV que deu certo porque incorporou uma forma metafórica do Jeca Tatu), representam uma forma de conhecimento sempre desdenhada pela cultura dominante (branca e europeizante). É a sabedoria das lendas, crenças, crendices e saberes específicos da herança africana. No "Sítio" da televisão, tais personagens também não foram colocados em segundo plano. Em todas as aventuras sempre houve acontecimentos paralelos nos quais avultaram. Através deles transmite-se um tipo de cultura oral e interiorana que a tecnologia e o racionalismo vêm esmagando de há muito no Brasil. A própria televisão, por seu caráter centralizante e urbano, é fator - hoje - desse esmagamento. Essa forma de saber, carregada de magia e de experiências ancestrais da humanidade, esteve presente na televisão tanto quanto nos livros. Coloca a crença em contato com a herança africana de nossa formação, herança infelizmente escamoteada da cultura, chamêmo-la escolar, que é a branca e européia em país mestiço, fortemente (e felizmente) marcado pelo negro.
6) Saber Como Aventura - Abertura e alegria diante do conhecimento. O equilíbrio das três formas básicas e universais do saber (o racional, o intuitivo e o mágico) integradas pelo Conhecimento (que é o saber em forma de sabedoria) geram o gosto do saber. Sempre que o saber é prazenteiro e integrador torna-se fascinante aventura. Para tal, não pode ser restritivo, deve ser aberto, desafiante, provocativo, novo em cada faceta. Cada saber é, em si, fechado, restritivo e auto-suficiente. Só o conhecimento permite a abertura integradora de todos os saberes.
Quando Lobato transforma a vida daquele grupo familiar em ação, viagem, emoção e aventura, está estimulando o gosto pelo conhecimento através do saber. É sempre através de uma das formas citadas do saber (racional, intuitivo e mágico) que se desenvolvem as tramas e aventuras. É este "saber" que tira a garotada dos apuros, fá-la caminhar com alguma segurança pelos vários mundos (o da mitologia; o da Roma antiga; o do lado sombrio da Lua - apenas para citar alguns). É sempre uma das formas do saber, via Visconde, via Emília, ou Tia Anastácia, o que permite e engendra as fabulosas aventuras. Se não ensina nem exercita a memória, atua subjacentemente, predispondo ao conhecimento, induzindo à mais fascinante e divertida das experiências: a curiosidade, a vontade de saber, o desejo de conhecer, o hábito de experimentar, o gosto de fabular. Isso é educação: aprender a aprender. Amor ao conhecimento. Alargamento dos condutos sensíveis, dar largas ao imaginário.
7) Amizade e espírito de grupo - a convivência daquele grupo com as diferenças de temperamento de cada um de seus componentes, sem esmagar a maneira de ser de nenhum, é básica do ponto de vista pedagógico (embora raramente seja anotado como tal). Não só os temperamentos: é diversa a visão de mundo daqueles personagens, em função, inclusive, do tipo de saber que representam. E sem falar na Emília, perguntadeira, metida, "semostradeira" (como a chamava Lobato), eterna desarrumadora das formas clássicas do saber bem comportado. Pois eles convivem. Discutem, chegam a brigar. Como irmãos, porém. Raiva, inveja, ciúme, quando aparecem - e aparecem - são exercidos ali mesmo e logo metabolizados pelo cimento da união, mais poderoso. Amar é chegar ao ponto da separação e da ruptura mas continuar junto. A versão televisiva em nada afetou a intuitiva dinâmica de grupo da literatura lobatiana.
8) Apoio à curiosidade e inventiva - criatividade como solução fundamental de vida - ausência do medo de perguntar (Emília) - Tudo no "Sítio" é baseado em curiosidade e inventiva. Curiosidade transformada em ação é a base das histórias. Esta, porém, não fica nas perguntas: é transformada em atividade pelas crianças, através da inventiva. Ora, conciliar a busca da verdade (curiosidade) com a inventiva necessária, é unir pensamento e ação e, portanto, realizar o ideal pedagógico (e humano) de não esquizofrenizar a realidade, separando o saber teórico do prático.
Tudo isso se liga com outro ângulo da pedagogia Lobatiana, este com raízes na psicologia: o que há de contemporâneo no pensamento psicanalítico tem a ver com a formulação de Bion que coloca a criatividade no centro da solução até mesmo de problemas mentais. Criatividade - neste sentido - não seria apenas a solução imaginosa na busca da mudança constante, porque cada momento é sempre novo. Nós é que não somos novos a cada momento. Ao contrário, somos eco a repetir maneiras anteriores de ser, convicções precedentes, entendimentos antigos, experiências já vividas. Diante de cada momento, sempre novo, diferente, prenhe de inusitados, nada mais fazemos que repetir hábitos e costumes, opiniões e idéias, com as quais e com os quais nos acostumamos. Raras vezes admitimos o novo, o criativo, o mutante. Esse conceito (dificil de formular e de entender) está implícito nas aventuras de Lobato (como em quase todas as aventuras, porque a aventura é símbolo da necessidade de criatividade para sair da repetição e do eco que são resíduos e entraves na vida das pessoas). É a criatividade permanente, a responsável pelas soluções daquele grupo. Criatividade e coragem. Liberdade concebida não como o contrário da prisão mas como abertura para o novo, o acaso, a criatividade.
Este lado da obra de Lobato esteve presente na versão televisual que contou, ademais, com os recursos da eletrônica a agregar certo grau de surrealismo através da representação visual, da criatividade liberta dos limites e das castrações do chamado real objetivo. O fantástico pode corporificar-se.
9) Relações sociais tendentes ao igualitarismo - Lobato é de 1882. Seu avô fazendeiro sempre quis fazer dele um poderoso senhor de terras. Ele mesmo foi fazendeiro por algum tempo (na fazenda, escreveu "Urupês", livro que, com "Cidades Mortas", o lançou na vida literária). Viveu, portanto, em época de predomínio de tipo de relação social patriarcal. Sem qualquer posição ideologicamente revolucionária, foi - porém - quase sempre uma espécie de marginal do grupo privilegiado do qual proveio.
A seu tempo, as relações sociais eram marcadas por acentuada divisão de classes e as menos favorecidas não tinham, não conheciam, sequer pleiteavam os seus direitos. Dentro desse contexto de sua formação, Lobato coloca e integra em seus livros infantis um grupo diferente social, cultural e racialmente. Fora dos livros, na sociedade real, as relações eram marcadas por uma espécie de hierarquia de classe social e de raça: branco senhor, preto serviçal; senhor culto, empregado inculto etc. Mas a relação interna de grupo específico do "Sítio" era (é) da maior democracia! Lobato reflete na relação interna do grupo uma igualitária forma de democracia de convivência.
Dona Benta não vive de seus preconceitos de elite, nem sobrepõe a sua cultura à de Tia Anastácia. Idem Narizinho e Pedrinho diante dos empregados. Não são patrõezinhos: são companheiros de aventuras. Isso não é dito nem explicitado, mas salta, naturalmente, da convivência intragrupal e atinge as crianças, produzindo-lhes um sentido espontâneo de igualdade social, respeito à pessoa humana, certeza da igualdade de direitos. Assim se formam as matrizes da cidadania e do sentido democrático da vida.
Na versão televisual tal elemento esteve claramente presente e até se ampliou, aquecido pela qualidade artística dos atores e atrizes intérpretes, a dos roteiristas que o escreveram e a de Geraldo Casé que o dirigiu.

EMÍLIA E O DESAFIO DA LIBERDADE...
Emília é fundamental para o universo infantil. Representa a materialização da fantasia maravilhosa e onipotente de toda criança de dar vida, "animar" qualquer objeto. Animar vem de "anima" que quer dizer "dar vida", "dar alma". Através da "animação", ou seja, doar alma ao ser inanimado, a criança supera a sua dependência terrificante. Através da onipotência ela foge para o mundo no qual tudo pode, tudo faz, tudo passa-a-ser; um mundo no qual é rainha e deusa.
Emília representa a relação da criança com o milagre subitamente real. Ela, portanto, precisa de algo deslumbrante, mágico, ou inusitado: não pode ser apenas engraçada ou decidida, precisa traduzir a presença permanente do milagre e da onipotência para que a criança se sinta dona, ela também, da Emília. A magia está na mente infantil. Emília emblematiza-a. E de modo afirmativo, peremptório, sem inferioridade.
Via Emília, Monteiro Lobato ins(des)tilava o seu próprio senso crítico, as ironias e travessuras que a sisudez de sua posição não permitia na sociedade repressora em que viveu. Emília é escape, fuga, volta por cima, a vitória permanente da liberdade, da criatividade e da alegria sobre a opressão dos adultos, mais velhos, sempre brecando as "reinações". Emília é a desarrumadora de ordens impostas: é o sonho da liberdade.
Esta Emília "danadinha" (como a chamava Lobato) leva para as crianças não apenas a idéia de alguém nervosa, irritadiça e mandona mas, igualmente, formas embrionárias do espírito crítico, nascente nas crianças.
Quando protesta, quando inventa ou comanda as brincadeiras, reivindicações, etc. Emília não está propriamente esmagando as demais crianças (Pedrinho, Narizinho, etc.), está a ser a condutora do espírito crítico destas, exatamente por ser profundamente solidária com elas.
Coragem, eis outro valor fundamental na atitude de Emília. Curioso, esse vetor: Emília não ter medo. Medo é coisa de gente, não de boneca. Mas tudo o que Emília representa, para existir, ser e permanecer, precisa não ter medo. Como a intuição vai ter medo? Como conciliar criatividade com medo? Como se aventurar pelas estradas do conhecimento (as histórias de Lobato nada mais são do que fascinantes aventuras pelo mundo do conhecimento) tendo medo? Emília representa o contrário do medo: a idéia de aventura; o caráter ativo; busca; definição; nitidez; decisão. Esses traços vicejam no terreno onde medo não pode morar. No extenso latifúndio de nada ou muito de cada ser, há terrenos, territórios, rincões, picos, planaltos, planícies, socavões, grutas, poços, pradarias, florestas, jardins, quintais, fazendas, sítios, paragens. Pois os terrenos nos quais mora o medo estão situados do lado oposto aos terrenos onde habitam a busca, o intrépido, a definição, a nitidez, as Emílias internas da personalidade de cada um, a coragem de ser. E coragem de ser é matéria pedagógica, altamente educativa.
A Emília se deve - ademais - a invenção do "faz-de-conta", pontal da criatividade ilimitada, expressão delirante mas deliciosa da onipotência infantil que tudo pode e resolve com imaginação. O "faz-de-conta" tanto acompanha a criança como o adulto. Faz de conta que o futuro será melhor; faz de conta que o seu partido ganhará; que a sua tese é mais justa; que o seu clube vai ser campeão; que as virtudes serão reconhecidas; faz de conta, faz de conta, assim vamos levando, temperando e "embromando" a vida. Porém no plano objetivo das histórias, o faz-de-conta de Emília resolvia os problemas de algo fundamental a ser vencido ou ultrapassado em qualquer processo de educação: a frustração. Trabalhar a frustração é educar-se. Talvez seja a mais profunda das conquistas educacionais: equilibrar a taxa de frustração com a taxa de realização. Equilibrar o princípio da realidade (que sempre traz frustração) com o princípio do prazer. Tudo se resume na dificílima descoberta das frustrações possíveis, suportáveis, segundo cada idade ou fase. E para as limitações da chamada realidade objetiva só mesmo o exercício de atividade interior rica, da intensa ativação da fantasia. A fantasia bem trabalhada, fluente, sem barreiras, nem medo de sobrevoar as planícies da loucura, é parte rica (e enriquecedora) da mente, tão rica quanto a racional, tão necessária quanto ela. Na medida em que o reino do faz-de-conta se instala, a fantasia se proclama rainha e a criança poderá superar mais frustrações do que lhe ensina o pobre e pouco imaginativo racionalismo dentro do qual é habitualmente educada.
Emília jamais finge saber (salvo quando banca a "sabida"). Ela não tem medo: de perguntar, de dizer bobagem, de querer saber. Bastava esta sua característica, apenas esta, para em cima dela se escrever todo um tratado educacional. O processo educacional e a forma pela qual o manipulam os adultos é todo um longo processo de ensinar as pessoas a ter vergonha: vergonha de perguntar; de ser o que se é; de cumprimentar; de não saber; de querer pertencer; ter de saber e de não saber.
Que civilização é a nossa que ensina as crianças a ter vergonha? Que carga de valores e esmagamentos transmite-se às gerações mais novas a ponto tal, que precisam ter vergonha até de dizer o próprio nome em voz alta na frente do grupo? A tudo isso Emília responde (contesta) com determinação e coragem. Ao não ter medo de perguntar, Emília torna-se capaz de conduzir o fluxo da vontade de saber e de conhecer da criança. Está a ensinar a espontaneidade e independência diante dos adultos. Está a fortalecer a confiança em sua (delas, crianças) disposição pessoal, individual e própria de aprender.
Emília carrega, portanto, a liberdade como síntese de sua figurinha simbólica e gigantesca. A liberdade, eterno e indefinível enigma, com o qual e sem o qual não sabemos viver...
Na obra de Lobato, Emília não nasceu pronta e acabada. Foi evoluindo tanto quanto ele, na técnica de escrever para crianças. Nasceu boneca de pano, de 40 cm. Tia Nastácia fê-la moreninha, de uma saia velha. Seus olhos de início foram de retrós preto. Posteriormente azuis. Depois virou gente. Cresceu "asneirenta" e "teimosa".
Ah, a materialização de Emília de boneca em gente! Quanta incompreensão viveu Lobato por causa da mesma! Materialista, chamaram-no: quer equiparar-se a Deus! Só Deus pode criar seres humanos! Veio a crítica violenta pelo pecado de, sendo ficcionista, fazer ficção. Eram tempos em que setores conservadores do catolicismo ainda estavam longe do arejamento advindo do concílio Vaticano II.
Na versão televisual foi retirada da Emília uma de suas características: falar errado. Fico imaginando os puristas de hoje, parentes e irmãos dos puristas ou fariseus daquela época, cobrando da Rede Globo e da TV-E (as responsáveis iniciais pelo "Sítio") se a Emília da TV dissesse aquelas "maravilhas" faladas pela Emília do livro, algumas das quais, ainda me recordo:
Ela chamava (atenção revisão: não corrigir!):
• CARAMUJO, de "CARA DE CORUJA"
• BELISCÃO, de "LISCABÃO"
• PEQUENO POLEGAR, de "POLEGADA"
• LEITE, de "MANDIOCA LÍQUIDA".
Emília só dizia "bissurdo" porque para dizer "absurdo" teria que abrir a boca e a costura não permitia. Não é notável?
Além de inventiva na troca de letras das palavras, a Emília dos livros tinha as línguas do P e do Pisco e usava vários desses códigos tão do agrado da criançada, reiventando o idioma. Fico a imaginar a Emília da TV falando "errado" como a Emília do livro. Os fariseus cairiam em cima. Em nome do falar da norma culta, acusariam a televisão de deseducar... Andaram certo os responsáveis pelo "Sítio-TV" quando não colocaram a Emília a dizer "bissurdo" sempre muito "asneirenta". Estariam dando pretexto para os eternos críticos numa fase de implantação do projeto na qual tais incompreensões e mesquinharias culturais poderiam atrapalhar. Afinal o Brasil é muito mais conservador do que parece...
Nesta linha de criatividade, fundamento da existência de Emília, Renato Pacheco em seu ótimo estudo aponta outra característica merecedora de anotação. A da Emília "botadeira de nome das coisas e nas pessoas" - Vejam que inventiva (atenção revisão: não corrigir!):
• JOÃO FAZ DE CONTA (era o irmão de Pinocchio)
• CIRCO DE ESCAVALINHO (circo de cavalinhos)
• PANTASMA DA ÓPERA (era a sua implicância com o ph etimológico, depois banido de nosso idioma mas existente ao tempo dos livros infantis de Lobato. Fantasma era Phantasma. Por implicância com o ph Emília só falava Pantasma).
• CONSELHEIRO (Era o burro falante).
• LELÉ (assim ela chamava, vejam só, o Hércules da mitologia!).
• PENINHA (o menino invisível).
• MEIOAMEIO (essa é notável e bem da Emília: chamar de meioameio o Centauro).
Há outras características isoladas e esparsas da Emília, importantes de se anotar. Foram surgindo aos poucos, na medida em que o próprio Lobato apaixonava-se pela personagem e aprimorava o que já nascera genial e criativo.
1. Em Emília todos os sentidos são poderosos e desenvolvidos. Seu faro é poderoso. Sua visão (apesar dos olhos de retrós) sempre foi superior. Essa espécie de exaltação e uso dos sentidos de Emília é muito importante numa sociedade (a nossa) que os desestimula. É importante, ademais, para a formação das crianças desabituadas por mil rituais urbanos e tecnológicos a usar, cada vez menos, os sentidos, que acabam por se atrofiar.
1. Emília compreendia besouros, formigas ou marcianos. Daquele grupo era quem conhecia a linguagem dos bichos, dos seres inanimados ou de outros planetas. Aqui ressalta um elemento profundo do ponto de vista da simbologia e nem sempre observado pelos analistas, estudiosos ou críticos de Lobato. Conhecer o idioma dos animais, insetos e seres inanimados é dotar a vida e os sentidos de novos e sutis mecanismos de percepção. É exercitar a criatividade como só as crianças sabem fazer em seu animismo: atribuir vida humana às coisas da natureza e entrar em relação com elas.
1. Emília não tinha coração. Várias vezes é má ("mazinha" como a chamava Lobato via Dona Benta). Chegou a ser grande interesseira - quem não se lembra? - quando se casou com o Marquês de Rabicó (este, um personagem nunca bem resolvido no "Sítio" da TV).
Poder ser "má"! Poder dar natural vazão aos impulsos de egoísmo de qualquer criança. Não reprimir voracidades inerentes à vida. Colocar o egoísmo a serviço da vida e da afirmação do ego individual (que precisa de doses de egoísmo). Fazê-lo conviver com o altruísmo. Não negar um traço ruim que todos temos e a cultura em geral reprime ou hipocritiza. Eis outro aspecto educativo, porque saudável, da Emília: a relação entre o sentimento e o egoísmo. Entre o eu, o mim e o outro.
Agora, vejamos a ligação de tudo isso com a política. A televisão brasileira, durante os anos de 1975 a 1984, foi capaz de fazer o Sítio do Pica-Pau Amarelo,
Do começo de 1985, quando termina o Sítio do Pica-Pau Amarelo, até esta data, são 11 anos. Desde então, em toda a televisão brasileira ocorreu o desaparecimento de preocupação significativa com as crianças. A programação infantil ou foi invadida por películas de terror ou por formas que (diferentemente da pretensão de Lobato de formar cidadãos) buscam formar consumidores. Hoje, a programação infantil dos canais é a grande escola de formação de consumidores precoces, que vão ao ponto não apenas de consumir o que vem muito bem "embalado" como, até, de consumir a indigência musical das "faixas de discos" gravados pelas apresentadoras, moças encantadoras mas quase todas inevitavelmente louras, dolicocéfalas, brancas, em nada afinadas com a formidável etnia, mestiça, deste país e em nada afinadas com valores estruturais da cultura brasileira.
Ao lembrar os 60 anos da boneca Emília, deixo com esta Casa a preocupação com o tema criança-televisão, de eminente valor político. Refiro-me a ele porque do ponto de vista da literatura infantil o país pode orgulhar-se da qualidade editorial de grande parte dos atuais livros brasileiros para crianças. Mas, do ponto de vista do uso dos meios de comunicação, temos o rádio, cujo espectro quase nada tem para crianças (a proporção de programas infantis no rádio é 0,001%). A televisão não está a refletir a necessidade de ao lado de formar consumidores - formar também cidadãos, porque o consumidor, quando investido da cidadania, é um consumidor diferente. Ademais, mesmo numa sociedade de consumo não deve ser este que forma os valores e, sim, os valores que devem conformar o consumo.
A formação pura e simples de consumidores precoces nada mais é que mimética, repetitiva, imitativa, dependente, não obtendo aquilo que, por intermédio de Emília, Lobato sempre tentou: a independência de pensamento, a possibilidade de leitura crítica sobre o mundo, a busca de uma atitude de vida original e criativa diante de macro processos de massificação, em suma, aquilo que ela mesma, a bonequinha Emília dizia de modo tão gracioso e pretensioso mas impoluto: "Sou a independência ou morte".


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quinta-feira, março 02, 2006


 

O ATOR-ANIMADOR


Marionetista, manipulador ou ator-animador?


por Valmor Beltrame - Níni



Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
A diversidade de nomenclaturas existentes para definir quem é o profissional que se expressa com a linguagem do teatro de formas animadas, evidencia que essa é uma tarefa complexa. Historicamente, "titeriteiro" e "marionetista" sempre foram as expressões mais utilizadas. Porém, em janeiro de 1979, na cidade de Ouro Preto, durante o Congresso da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos - ABTB, os artistas presentes ao evento decidiram que "bonequeiro" era a palavra que melhor definia este profissional. Naquela época o teatro de bonecos produzido pelos grupos no Brasil já fazia rupturas estéticas visíveis em relação ao teatro de bonecos tradicional, o nosso “mamulengo”, e com o teatro produzido em escolas bastante conhecido como "teatro de fantoches". E “bonequeiro” passou a ser a nomenclatura corrente. Mas este consenso não durou muito. Logo apareceram outros nomes com a justificativa de que "bonequeiro" é expressão mais adequada para quem trabalho com o boneco do tipo antropomorfo e por isso, não aglutina outras importantes tendências mais contemporâneas desta linguagem.
Posteriormente a denominação mais aceita foi "manipulador", porque creditava a este artista a responsabilidade da encenação. No entanto, muitos profissionais da área, passaram a considerá-la inadequada porque pressupõe uma relação verticalizada do ator sobre o boneco ou objeto. Esta visão não contempla um aspecto fundamental no trabalho deste artista, o diálogo entre a matéria de que é feito o títere, os mecanismos de articulação e manipulação, assim como as intenções do manipulador. Ou seja, a relação que se estabelece entre o artista que se expressa com bonecos e objetos ou formas animadas é mais complexa do que a palavra "manipulador" confere. Certamente por isso, mais recentemente é freqüente o uso de nomenclaturas como “ator-manipulador”, “ator-bonequeiro”, “ator-animador”. São duas as novidades postas nessas expressões: a primeira é a idéia de "animar" o objeto inanimado, a idéia de dar vida a algo; e a segunda diz respeito a presença do bonequeiro como ator, como compositor da cena. É neste momento que se configura, de modo mais visível, a concepção de que este artista é ator, é intérprete.
A apresentação destas nomenclaturas não encerra as dúvidas que pairam sobre a denominação mais adequada sobre o trabalho deste profissional. Por isso o trocadilho usado pelo mamulengueiro Chico Daniel , da cidade de Natal, ilustre bem a discussão: Bonequeiro: conheço, quem é? Com a brincadeira, nosso mestre mamulengueiro reafirma que trata-se de um profissional conhecido, mas as dúvidas sobre quem é o artista bonequeiro, permanecem.
O intento por desfaze-las pode principiar identificando-o pelo que faz. Mas obstáculos já surgem aí, uma vez que é um profissional que faz um pouco de tudo. O mais simples seria iniciar dizendo que o ator-animador é um artista que encena espetáculos expressando-se com bonecos. E na realização desse trabalho, normalmente, concebe o texto, ou seja, é dramaturgo; confecciona os bonecos, os objetos, o que lhe exige competências para esculpir, pintar, costurar e, assim, é escultor, pintor e figurinista; concebe e executa o cenário, e materiais de cena... é cenógrafo e aderecista; seleciona a trilha sonora e às vezes compõe músicas para o espetáculo... é músico; interpreta utilizando bonecos e objetos para representar e, atualmente, é comum extrapolar os limites da "tenda ou palquinho" tradicional dos bonecos e atua numa relação direta com o público, ou seja, é ator; dirige o próprio espetáculo, é diretor; concebe a iluminação para o espetáculo, é iluminador; levanta os recursos financeiros e condições materiais para a realização do trabalho, além de divulgar e vender o espetáculo, é produtor; define o material gráfico tais como programa e cartaz, assim, também é artista gráfico.
A polivalência desse artista faz lembrar o ator italiano do final da Idade Média e princípio do Renascimento, o vagabondo, que fazia de tudo um pouco, ou muito de tudo, desde magia, dança, prestidigitação, contava histórias, propunha jogos de azar, vendia produtos miraculosos e... fazia teatro.
Como se vê, trabalhar com teatro de animação é atividade que envolve o conhecimento das práticas de outras profissões. A realidade concreta de muitos profissionais brasileiros que atuam com esta arte exige, no exercício da profissão, o domínio de conhecimentos próprios de outros campos. Exige a realização de tarefas que, mesmo não tendo formação na área, os atores-animadores precisam executar.
O tema da formação profissional do ator-animador vem, há anos, despertando o interesse de profissionais envolvidos com esta arte. Em setembro de 1990, realizou-se em Londres o "Simpósio Internacional sobre a Formação de Dedicação Plena para Marionetistas." O evento foi realizado no Teatro Lilian Baylis e reuniu professores e diretores das escolas de teatro de marionetes da Europa, com o objetivo de discutir "a necessidade de formação acadêmica plena para profissionais de teatro de marionetes." Na verdade, autoridades inglesas se mobilizavam para criar o bacharelado nessa área, junto à Escola Central de Fala e Drama, o que acabou ocorrendo em 1993. A apresentação de trechos, a seguir, das palestras dos convidados ao Simpósio é enriquecedora por revelar divergências e pontos comuns em torno do tema, notadamente em relação à visão do que seja a arte do teatro de animação e do profissional ator-animador.
Para John Blundall, "o teatro de animação é um teatro sintético que combina uma grande variedade de formas de expressão. Nenhuma arte pode estar ilhada das demais e muito menos a arte do teatro de animação" (Blundall, apud Simpósio,1990:21). A afirmação do diretor artístico do Cannon Hill de Birmingham, Inglaterra, é importante na medida em que destaca a característica de aglutinar, de sintetizar diversas formas de expressão criadora integrando a arte do teatro de animação e nela interagindo. "(...) não estar ilhado das demais artes" não significa, porém, que o bonequeiro deva concentrar em si o domínio de tantas áreas do conhecimento. A polivalência do bonequeiro, característica singular desse profissional, pouco comum em outras profissões pode, ao mesmo tempo, estar permeada de problemas, uma vez que dificilmente alguém consegue ter domínio completo sobre tantas áreas simultaneamente.
Henryk Jurkowski prefere focar a discussão no questionamento sobre as diferenças e similitudes entre o trabalho do ator e do marionetista, afirmando:
A questão que se coloca é se existem diferenças entre um ator manipulador e um ator. Alguns partem do princípio de que tudo é teatro, tanto o teatro de animação como o teatro de atores são, na sua essência, teatro. Outros defendem que o teatro de animação e o teatro de atores são disciplinas distintas. Tenho me perguntado se os dois podem ser chamados de intérpretes? Para mim o ator, no palco, se transforma na personagem. Já o bonequeiro, no palco, concentra toda a sua força criativa em fazer do boneco a personagem. O intérprete faz uso de diferentes recursos para contar uma história (Jurkowski, apud Simpósio, 1990:17).

A tentativa do Professor do Departamento de Direção Teatral da Escola de Teatro de Bonecos da Academia Teatral de Varsóvia, sugerindo diferenças entre ator e intérprete, colabora pouco na identificação de diferenças entre o trabalho do ator e do bonequeiro. Pelo visto, existem peculiaridades na Polônia, país de Jurkowski, onde ator é diferente de intérprete. No contexto brasileiro as expressões se eqüivalem. No entanto, o professor aponta uma característica fundamental no trabalho do bonequeiro quando diz que "o ator se transforma na personagem. Já o bonequeiro concentra sua força criativa em fazer do boneco a personagem no palco." Há, dessa maneira, o deslocamento do centro da atenção para o objeto. Nessa diferença está, certamente, uma das características marcantes do trabalho do profissional de teatro de animação.
Essa posição é reafirmada por Caroline Astell-Burt, professora na Escola Politécnica de Middlesex, Inglaterra: "Estou segura que não é necessário convencer alguém de que as técnicas do teatro de animação são únicas, são específicas. O que não significa que tais técnicas não sejam comuns a outras formas de arte. Defino o marionetista como o artista que trabalha essencialmente através de objetos para se comunicar" (Astell-Burt, apud Simpósio, 1990:30). Assim, vai despontando como consenso a idéia de bonequeiro como ator que se expressa "animando" objetos; fazendo com que o centro da representação não esteja no seu corpo como intérprete, e sim, no objeto. Esta singularidade é fundamental para a compreensão desta arte.
É importante, ainda, destacar as reflexões de Nina Dimitrova, do Instituto Estatal de Teatro de Sofia, Bulgária, porque propõe a formação diferenciada para o marionetista, evidenciando que os processos de criação são distintos dos do trabalho do ator. A professora afirma:
O processo de criação no teatro de animação é diferente do processo de criação no "teatro de atores." No teatro de animação existe um sujeito e um objeto no processo de criação: o ator é o sujeito e o boneco é o objeto. No entanto, o ator de teatro é, normalmente, sujeito e objeto do seu próprio ato de criação. No teatro de bonecos, o ator vive com o boneco, o que não acontece noutras formas de expressão cênica. Por isso o teatro de animação exige um tipo de formação distinta da formação destinada aos que querem trabalhar como atores (Dimitrova, apud Simpósio, 1990:10).

A presença do objeto na cena como protagonista da ação é a razão da diferença apontada pela professora. Mas, ao dar ênfase à necessidade de uma formação específica, Dimitrova deixa de explicitar a importância de o ator-marionetista conhecer e se preparar como ator. Fica a impressão de que o trabalho do ator não faz parte da formação do ator-marionetista e este, parece-me um aspecto essencial ao seu trabalho.
A posição defendida por Margareta Niculescu, da Escola Superior da Marionete na França, reúne elementos que, ao mesmo tempo em que destaca particularidades, inclui este profissional na arte do teatro. O trecho da sua palestra é revelador:
Poderíamos definir o marionetista como o artista que cria formas, formas no espaço, pequenas ou grandes, bi ou tridimensionais com diferentes tipos de material. Isto o converte num artista plástico que deveria se formar numa escola de Belas Artes? O marionetista também é um artista que dá vida a objetos através de movimentos e da energia do seu próprio corpo. E precisa de uma grande destreza física e imaginação para traduzir os movimentos do seu corpo em movimentos do boneco. O marionetista seria, assim, mais coreógrafo? Mas também cria situações dramáticas, o que talvez o aproxime mais do ator. Ou quem sabe o marionetista seja alguém que sabe fazer tudo! Talvez, Deus tenha dotado um grupo de indivíduos de todos os talentos necessários e são só estes indivíduos que podem chegar a ser marionetistas! Creio que o marionetista é, essencialmente, uma pessoa de teatro, um artista intérprete (Niculescu, apud Simpósio,1990:7).

Deixando de lado a ironia explicitada no pensamento da diretora romena, sobretudo quando se refere aos múltiplos talentos do bonequeiro, cabe ressaltar que Niculescu aponta para a necessidade que tem o profissional de teatro de animação de dominar, sim, uma multiplicidade de conhecimentos fundamentais para a realização do espetáculo, mas chama a atenção para seu trabalho de intérprete, destacando a importância do domínio do espaço e da expressividade do corpo.
As opiniões dos cinco professores referidos, com experiências distintas e provenientes de diferentes realidades, apresentam em comum, a necessidade de ver o teatro de animação como expressão cênica, ou seja, o teatro de bonecos precisa ser compreendido antes de tudo como teatro. No entanto, trata-se de uma arte que reúne e sintetiza elementos de outros campos artísticos, notadamente das artes visuais, exigindo do profissional que atue com essa expressão, conhecimentos próprios dessa área. Ao acordarem que o ator-animador é interprete, evidenciam a necessidade de uma formação que contemple saberes próprios da profissão de ator. E desse modo fica explícito que nem, todo ator é marionetista, mas todo marionetista é ator. O ator não precisa dominar as particularidades que caracterizam o teatro de formas animadas, mas o ator-animador não pode dispensar os saberes próprios da arte do ator.
O que caracteriza a arte do teatro de formas animadas é a presença do objeto/boneco interposto entre o ator-animador e o público; a relação ou comunicação do ator-animador com a platéia é mediada pela presença do objeto. Nas múltiplas formas de animar a marionete, a presença do ator-animador definindo, escolhendo e selecionando os gestos e ações do boneco é imprescindível. Por isso é ator, mas um ator que, para o exercício da profissão, precisa o dominar saberes que são próprios da arte do teatro de formas animadas.

Referências Bibliográficas
BELTRAME, Valmor. Animar o Inanimado: a formação profissional no teatro de bonecos. Tese defendida na ECA-USP, São Paulo: 2001.
RABETTI, Beti, Grupos Trupes &Companhia: momentos emblemáticos da história do teatro. In Revista Urdimento N.1, Florianópolis: UDESC, 1997.
SIMPOSIO Internacional sobre la Formación de Dedicación Plena de los Títeres. Londres: Calouste Gulbenkian, Britsh Conceil, Teatro Lilian Baylis, 1990.


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 12:58 PM 1 Comentários
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