Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



terça-feira, junho 24, 2008


 

“ERA UMA VEZ...”


O papel das histórias no desenvolvimento da criança


por Ivani de O. Magalhães



Resumo: No contato com crianças na faixa etária de 2 a 6 anos, em Instituições de Educação Infantil, não se pode deixar de notar a atração delas pelo universo das histórias infantis e o quanto seus personagens e enredos estão presentes em suas vidas. Sendo assim, investigamos as contribuições que estes “contos
maravilhosos” oferecem ao desenvolvimento destas crianças. Em um breve histórico, estabelecemos um paralelo entre a concepção de criança e a literatura infantil, visto que as histórias refletem o olhar e o tratamento dado à infância. Foram discutidas suas contribuições, tanto no campo afetivo, quanto cognitivo,mostrando que as histórias podem ser muito mais que diversão no cotidiano escolar. A partir de entrevistas com professoras que atuam na Educação Infantil, procuramos conhecer a maneira como as histórias são utilizadas em sala de aula, com que freqüência, e o que pensam sobre este tipo de atividade. Com isso,constatamos que as histórias estão presentes na escola e no dia-a-dia destas crianças, lhes dando o prazer e a
alegria de poder transitar por este universo mágico.

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como tema o papel das histórias infantis e, em especial, os
contos de fadas, no desenvolvimento emocional e intelectual de crianças de 2 a 6 anos. O hábito de contar e ouvir histórias é uma das mais antigas tradições praticadas pela humanidade e surge da necessidade de transmitirmos algo a alguém. O ser humano necessita comunicar-se, dizer algo àqueles que o cercam, compartilhar sentimentos, emoções e experiências com o grupo a qual faz parte.
Nos dias atuais nos encontramos em uma sociedade que possui um modo de vida bem
diferente do de alguns anos atrás. Temos carros,aviões, televisão, Internet e as crianças são,desde muito cedo, bombardeadas pelos mais diferentes estímulos áudio-visuais. Porém, nota-se que as histórias transmitidas através da tradição da oralidade jamais perderam o seu encanto, bastando que se diga “era uma vez...” a
uma criança para que seu interesse seja imediatamente despertado para o que virá a
seguir, descortinando-se para ela um universo mágico, onde tudo é possível e os mais diferentes sonhos são realizados.
Seja criança ou adulto, não há quem não goste de passar a noite em uma roda de amigos a contar “causos”, ou até mesmo ao telefone,ouvindo as experiências relatadas por outro. Os tempos mudaram, mas a necessidade de compartilhar experiências, ouvir de outro algo que fale ao nosso coração permanece. Com isso,constatamos que as histórias jamais perderam a sua importância. Até hoje, sempre que alguém senta para contar uma história, pratica a deliciosa arte de abrir as portas da imaginação.
No contato com crianças na faixa etária de 2 a 6 anos, em Instituições de Educação Infantil,não se pode deixar de notar a atração delas pelo universo das histórias infantis e o quanto seus personagens e enredos estão presentes em suas vidas. Acreditamos que se considerarmos que as histórias são inerentes à criança e à infância, essa compreensão poderá nos ajudar a entender a própria criança em seus processos de descoberta rumo ao desenvolvimento, abrindo-se um grande leque de possibilidades dentro do contexto educacional.
Sendo assim, ao longo deste trabalho configuraram-se os seguintes questionamentos: o
que faz com que uma criança, que se vê rodeada pela tecnologia de nossa era, se interesse pelo mundo do faz de conta? Quais contribuições estes contos maravilhosos podem trazer para as crianças de 2 a 6 anos? Como educadores da educação infantil concebem o uso de histórias infantis? Existe uma reflexão em torno desta questão? E esta, se reflete em uma prática de contar histórias, inserida de forma constante em
sua tarefa de educar?
Para tentar responder estas questões foram realizadas pesquisas bibliográficas, tais como a leitura de livros e artigos pertinentes, bem como a realização de entrevistas com professoras de alunos de 2 a 6 anos de duas escolas: uma pública e uma particular.
Acreditamos que a partir dos resultados obtidos poderá ser construído um indicador de
como aproveitar este mundo de magia e encantamento, do qual fazem parte as histórias
infantis, no enriquecimento do ensino oferecido às crianças que estão em uma etapa crucial de seu desenvolvimento: a Educação Infantil.
2. AS HISTÓRIAS NA HISTÓRIA:DIFERENTES VISÕES
No decorrer da história, a criança foi vista
de diferentes formas e os conceitos formados a
seu respeito foram modificando-se a cada época. Assim também ocorreu com a educação e o acervo cultural destinado a ela. Segundo Coelho (2003, p.41), nas antigas Grécia e Roma, a educação da criança era exclusividade de sua família. O aprendizado era
feito através da observação do comportamento dos adultos e a diferença entre adulto e criança não existia. Nesta época não existiam escolas formais. Durante todo esse período histórico, até a Idade Medieval, a infância recebia o mesmo patrimônio de mitos, lendas e romances épicos que os adultos, pois as crianças eram consideradas adultos em miniatura.
“Na Idade Média, com o poder da igreja,passou-se a propiciar à criança o ensino da
religião, da moral, habilidades da leitura,escrita e aritmética. Surgem os primeiros livros de caráter pedagógico com função moralizadora”. (Áries, 1981, p.68)Coelho
(2003, p.54-55) nos coloca ainda que, com o Renascimento, os textos escolares
passaram a sofrer menos influência da vida dos santos e da bíblia e, para as crianças, ganharam espaço os contos e fábulas com elementos da mitologia, fatos lendários e da tradição popular.Também os contos europeus, que eram coletas de
contos populares, tiveram seu “nascimento”,composto por personagens como rainhas,
príncipes, princesas, fadas, magos e bruxas,juntamente com a importância que começa a ser dada à escola formal. Por volta do século XVII,Charles Perrault deu início à literatura infantil fazendo surgir os contos de fadas, imortalizando histórias que são de grande repercussão ainda nos dias de hoje, como “Cinderela” e “Chapeuzinho Vermelho”.
De acordo com Zilberman (2003, p.65),com o Iluminismo, surge a valorização da razão
em detrimento à imaginação, onde se entendia que a criança não deveria perder tempo com as histórias de fadas. Mas, no século XIX, com a ênfase e a preocupação dada ao estudo do desenvolvimento infantil, as questões das histórias infantis e da educação novamente são revistas e, a partir deste século, sobre profundas influências da Revolução Industrial, e a literatura infantil se preocupa em abordar contos críticos,
com idéias sociais.
“Instaurou-se um antagonismo entre a necessidade de conhecer a realidade e a criação
fantástica. No plano educacional, criou-se uma corrente que condenava a fantasia na literatura infantil, valorizando a verdade e o realismo como únicas formas de aprendizagem e de conhecimento da realidade”. (Radino, 2003, p.106)
Mas, segundo Coelho (2005, p.11) a fantasia, a imaginação, o mistério dos contos de
fadas e o folclore, dando liberdade à criança para criar e imaginar, reaparece nas histórias infantis com o Romantismo. A partir daí, principalmente no século XX, as histórias infantis ganham ênfase, sendo consideradas em sua importância no desenvolvimento infantil.
3. AS CONTRIBUIÇÕES DAS HISTÓRIAS SOB O PONTO DE VISTA EMOCIONAL
A criança, ao ingressar na escola, encontra-se em um importante momento de transição. Ao mesmo tempo em que se vê diante de uma série de oportunidades, depara-se com forte angústia relativa à separação dos pais e às novas pressões da sociedade. Terá de se submeter a regras e ao difícil processo de aprendizagem. Nesse
momento, muitas questões inerentes ao processo de crescimento ainda não foram superadas e, ao contrário, são vividas intensamente. Dificuldades em superar o narcisismo, os conflitos edípicos, as rivalidades fraternas, o egocentrismo, as perdas,entre outras questões, se não puderem ser externalizadas, provocarão intensa angústia e dificultarão o desenvolvimento. Fortes reações emocionais virão à tona, podendo ser detectadas e trabalhadas pelos educadores:
“A aquisição de conhecimento não será possível se a criança não tiver a oportunidade
de expressar suas angústias e integrá-las ao seu mundo interno.” (Radino, 2003, p.118)Para Radino (2003, p.26), “os contos de fadas podem auxiliar a criança nesse momento,justamente porque são representações de acontecimentos psíquicos, diferentes da realidade factual. Nos contos, são projetadas fantasias inconscientes e universais, que tratam da realização de desejos e se relacionam a angústias nerentes ao processo de desenvolvimento”. Cashdan (2000, p.291), por sua vez,considera que os contos de fadas representam uma janela especial que se abre para a vida emocional das crianças, e que o impacto que estes têm sobre nós, adultos, vem da influência
que tiveram sobre nós quando éramos crianças.
Para ele, os contos de fadas são mais do que aventuras repletas de suspense que excitam a imaginação; são mais que mero entretenimento:
“Por trás das cenas de perseguição e dos resgates no último minuto, há dramas sérios
que refletem eventos que acontecem no mundo interior da criança. Embora o atrativo inicial de um conto de fadas possa estar em sua capacidade de encantar e entreter, seu valor duradouro reside no poder de ajudar as crianças a lidar com os conflitos internos que elas enfrentam no processo de crescimento.” (Cashdan, 2000, p.25)
Este autor nos aponta ainda que “o modo pelo qual os contos de fadas resolvem estes
conflitos é oferecendo à criança um palco onde elas podem representar seus conflitos interiores.
As crianças, quando ouvem um conto de fadas,projetam inconscientemente parte delas mesmas em vários personagens da história, usando-os como repositórios psicológicos para elementos contraditórios do eu.” Cashdan (2000, p.31)
A partir da compreensão de projeção, tem-se tomado conhecimento dos processos
inconscientes do psiquismo humano. Segundo o Vocabulário de Psicanálise, a projeção consiste em atribuir os próprios impulsos, sentimentos e afetos a outras pessoas ou ao mundo exterior e nos permite ignorar esses fenômenos em nós mesmos, quando eles são desagradáveis (Laplanche e Pontalis, 1992, p.374-5).
Em Totem e Tabu, Freud (1913, p.77) nos coloca que a projeção não é especialmente criada com fins de defesa egóica, mas surge também quando não existem conflitos, afirmando que a projeção de percepções internas para o exterior é um mecanismo primitivo que desempenha papel principal na configuração do mundo.
Segundo Bettelheim (1980, p.14): “Os contos de fadas transmitem importantes mensagens à mente consciente, à préconsciente,e à inconsciente, em qualquer nível
que esteja funcionando no momento. Lidando com problemas humanos universais,
particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas histórias falam ao
ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo
aliviam pressões pré-conscientes e inconscientes. A medida em que estas histórias
se desenrolam, dão validade e corpo às pressões do id, mostrando caminhos para
satisfazê-las, que estão de acordo com as requisições do ego e do superego.”
Para Radino (2003, p.118), a psicanálise trouxe importantes contribuições para a atual concepção de infância. Segundo a autora, nas primeiras relações é que a criança, pelas identificações, poderá constituir-se enquanto sujeito. Por meio de mecanismos como a idealização, a introjeção, a projeção e a transferência, a criança irá formando um padrão de relação, tornando-se um sujeito que busca a realização de seus desejos e a satisfação de suas pulsões.
Também segundo Radino, a psicanálise demonstra que os contos de fadas são importantes para as crianças, justamente porque são metáforas de processos que elas vivem inconscientemente.Ajudam a transformar nossos desejos e angústias, tornando-os compreensíveis.
Em uma linguagem acessível, os contos de fadas mostram à criança questões humanas, que ela vivencia mas não tem condições de verbalizar. Eles dão formas aos seus desejos e emprestam-se como um cenário de seus sonhos, aguçando sua imaginação e favorecendo seu processo de simbolização, tão necessário á sua inserção em um mundo civilizado e cultural (Radino, 2003,p.117).
4. O VALOR DOS CONTOS DE FADAS NA FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE
Para Bettelheim (1980, p.14), os contos de fadas transmitem mensagens simbólicas e
significados manifestos e latentes, atingindo todos os níveis da personalidade humana.
Segundo o autor, o prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um conto de fadas, e o encantamento que sentimos,não vêm do significado psicológico de um conto (embora isto contribua para tal), mas das suas qualidades literárias. O conto de fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse primeiro, e antes de tudo,uma obra de arte:“Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade.”
(Bettelheim, 1980, p.20)
Em Radino (2003, p.118 - 119), o conto de fadas não é o único, mas pode ser um importante instrumento de trabalho, auxiliando a criança a lidar com a ansiedade que está vivendo e a superar obstáculos, favorecendo o desenvolvimento de sua ersonalidade.
Neste sentido, Held (1980, p.237) nos coloca que “o impacto que um conto de fadas
pode provocar na criança é mais intenso e durável se sua apresentação for realizada em um clima livre. Como uma obra de arte, sua compreensão é emocional, ajudando a criança a entender-se por si própria. Dessa forma, o conto é por si mesmo edagógico, na medida em que responde às principais questões da criança: vida,morte, exualidade, medo, etc. A ênfase na escola está na atividade que o conto pode proporcionar.”
5. OS CONTOS DE FADAS, A ORGANIZAÇÃO DO PENSAMENTO INFANTIL E O ESTÍMULO PARA A
IMAGINAÇÃO

Existe uma série de preconceitos relativos ao uso dos contos de fadas. Ainda hoje há a idéia, por parte de muitos adultos, de que os contos de fadas significam fuga da realidade e não um ponto de partida para o conhecimento do real. Para Radino (2003, p.26), muitas dessas reações refletem preconceitos relacionados à própria concepção de infância. Inseridos em um mundo adulto, capitalista e racional, muitas vezes desconsideramos as reais necessidades da criança, em função de uma imagem que
idealizamos. Porém, ao contrário de desorganizar, a fantasia pode ser um importante
elemento de organização simbólica.
Para a autora, ao censurar os contos de fadas, muitos pais e professores não estarão
protegendo a criança de vivenciar as situações que estes apresentam, como o medo, a
sexualidade, a inveja, o ódio, entre outros, visto que estes sentimentos já estão presentes na criança, de forma fantasiada, desde muito cedo.
A idéia de que tanto contato com a fantasia desorganiza, ao contrário do que se imagina,pode servir como fonte de elementos simbólicos para a própria organização mental (Radino, 2003,p.142).
Assim, os contos de fadas, com seus enredos repletos de elementos mágicos, oferecem
inúmeros estímulos para a imaginação infantil e,de acordo com Radino (2003, p. 135), estas histórias não iludem, mas expõem as crianças a todas as dificuldades undamentais do homem.
Para ela, os contos aguçam a imaginação por serem formas simples e fechadas. Contudo,
obedecem a uma lógica muito rigorosa, e isto possibilitou a análise formal de suas estruturas narrativas por alguns teóricos.
Segundo Coelho (1987, p.13), contos de fadas são narrativas desenvolvidas dentro de uma magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas,fadas, ogros, gigantes, metamorfoses, objetos mágicos, etc.), com ou sem a presença de fadas e que apresentam, como eixo central, uma problemática existencial. Tratam de um herói ou
heroína que deve superar obstáculos ou provas,até atingir a realização essencial, desembocando muitas vezes em uma união homem-mulher. Já para Radino: “Todo conto inicia em um outro tempo e em um outro lugar, e a criança sabe disso. Ao iniciar um “era uma vez”, a criança sabe que partirá em uma viagem fantástica e que dela
retornará com um “e viveram felizes para sempre” ou expressões semelhantes. Esses
rituais mostram que vamos tratar de fantasia e isso faz com que embarquem nessa viagem e se identifiquem com os personagens.” (Radino,2003, p.135)
Para Gillig (1999, p.117), por outro lado,os contos de fadas ajudam a criança a nomear os desejos. Se ela não tiver condições de simbolizar,seu desejo provavelmente será externalizado por um sintoma. Se as crianças apresentam dificuldades, não é porque lhes falta imaginação,mas não lhes foi dada a oportunidade de dar forma a essa imaginação.
E os contos de fadas, segundo Bettelheim (1980, p.16), oferecem novas dimensões à
imaginação da criança que ela não poderia descobrir verdadeiramente por si só. E o mais importante: a forma e a estrutura dos sugerem imagens à criança com as quais ela pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida.
6. A CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO ÉTICA DA CRIANÇA
Rappaport (1981, p.6) considera que a criança em idade pré-escolar ainda é incapaz de
uma ética relacional, sendo apenas capaz de entender o permitido e o proibido dentro de uma dicotomia absoluta. Certo e errado devem estar bem definidos, e a expectativa presente é a da recompensa do bem e a punição do mal. Esta dicotomia possui um caráter organizador, pois caracteriza uma primeira organização da interação com o mundo externo, definindo suas conseqüências como boas ou más. A definição desses valores é importante fonte de segurança para a criança, pois a certeza de que há o bem e o mal definidos, que o mal terá uma punição certa, é o que dará segurança para, com sua fragilidade,transitar entre os perigos do mundo.
De acordo com Bettelheim (1980, p.13), a literatura infantil e, principalmente, os contos de fadas, podem ser decisivos para a formação da criança em relação a si mesma e ao mundo à sua volta. O maniqueísmo que divide as personagens em boas e más, belas ou feias, poderosas ou fracas, etc. facilita à criança a compreensão de
certos valores básicos da conduta humana ou convívio social. Tal dicotomia, se transmitida através de uma linguagem simbólica, e durante a infância, contribuirá para a formação de uma consciência ética.
Para ele, a criança necessita de uma educação moral que, de modo sutil e implícito, a
conduza às vantagens do bom comportamento,não através de conceitos éticos abstratos, mas naquilo que lhe parece tangivelmente correto e,portanto, significativo e isto pode ser encontrado nos contos de fadas (Bettelheim, 1980, p.13).
Ainda para o autor:“Segundo a Psicanálise, a criança é levada a se identificar com o herói bom e belo, não devido à sua bondade ou beleza, mas por sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de bondade e
beleza e, principalmente, sua necessidade de segurança e proteção. Podendo assim, superar o medo que a inibe e enfrentar os perigos e ameaças que sente à sua volta, alcançando gradativamente o equilíbrio.” (Bettelheim,1980, p.18)
Bettelheim nos coloca também que, ao contrário do que acontece em muitas histórias
infantis modernas, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. É esta dualidade que coloca o problema moral e solicita a luta para resolvê-lo (1980, p.15). Segundo ele,o mal não é isento de atrações e, com freqüência,se encontra temporariamente vitorioso nos contos. Desta forma, não é o fato de o malfeitor
ser punido no final da história que estes se tornam uma experiência em educação moral.
Neles, como na vida, a punição ou o temor dela é apenas um fator limitado de intimidação ao crime. A convicção de que o crime não compensa é um meio de intimidação muito mais efetivo, e esta é a razão pelo qual nos contos de
fadas a pessoa má sempre perde. Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de o herói ser mais atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas lutas. Devido a esta identificação a criança
imagina que sofre com o herói suas provas e tribulações, triunfando com ele quando a virtude sai vitoriosa. A criança faz tais identificações por conta própria, e as lutas interiores e exteriores do herói imprimem moralidade sobre ela (Bettelheim, 1980, p.15-6).
Para Vieira (2005, p.9), cada uma dessas histórias é um estímulo encorajador na luta da vida, em que se valorizam os princípios éticos na relação com o outro: o Mal é denunciado, e o personagem mau é castigado; o Bem é valorizado, e o personagem bom é premiado. A proposta e a realização básica são sempre de plena vitória final do Bom e do Bem. Conforme Bettelheim:
“A criança recebe através das histórias, uma base para compreender que há grandes
diferenças entre as pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções
sobre quem quer ser. Esta decisão básica sobre a qual todo o desenvolvimento ulterior da personalidade se construirá, é facilitada pelas polarizações dos contos de fadas. Se identificará com o bom herói não por causa de sua bondade, mas porque a condição do herói lhe traz profundo apelo positivo.” (Bettelheim,1980, p.18)
Portanto, as histórias são úteis na transmissão de valores porque dão razão de ser
aos comportamentos humanos. Tratam de questões abstratas, difíceis de serem
compreendidas pelas crianças quando isoladas de um contexto. A criança é incapaz de raciocinar no abstrato. Assim, virtudes, maus hábitos,defeitos ou esforços louváveis que interferem no comportamento social do indivíduo, gerando conseqüências à sua vida, não podem ser entendidos com esta clareza pelas crianças. Falta um referencial capaz de associar uma questão de comportamento a um fato.
7. PENSAMENTO E LINGUAGEM
Segundo Traça (1998, p. 174), as dúvidas infantis encontram mais consolo com os Contos de fadas do que com explicações, muitas vezes científicas, dadas pelos dultos. Explanações científicas são incompreensíveis para o pensamento infantil porque as crianças ainda não têm condições intelectuais de abstrair. Além
disso, qualquer novo conhecimento só fará sentido se for conquistado pela própria criança.
As informações que lhes são impostas como verdadeiras só ajudam a criar um muro de
incompreensões.
Bettelheim (1980, p. 60), cita:“Como Piaget mostrou, o pensamento da criança permanece animista até a idade da puberdade. Seus pais e professores lhe dizem
que as coisas não podem sentir e agir, e por mais que ela finja acreditar nisso para agradar a estes adultos, ou para não ser ridicularizada,bem no fundo, a criança sabe melhor. Sujeita aos ensinamentos racionais dos outros, a criança apenas enterra seu “conhecimento verdadeiro”, mas no fundo de sua alma ele permanece intocado pela racionalidade; no entanto, pode ser formado e informado pelo que os contos de fadas têm a dizer.”
Já Cademartori (1986, p.73) considera que, brincando a criança faz uso inconsciente e
espontâneo da possibilidade de separar significado e objeto. Para a autora, esse início de abstração que se dá quando é criada a situação imaginária no brinquedo e tem continuidade na experiência com histórias infantis, que são situações ficcionais que dão prosseguimento a essa experiência não fortuita na vida da criança que é a simulação, primeira tentativa de emancipar-se das imposições do meio. Através das histórias, a dimensão simbólica da linguagem é experimentada, assim como sua Conjunção com o imaginário e com o real.
Por outro lado, segundo Rappaport (1981,p.56), com o desenvolvimento da linguagem,
esta deixa de ser vista pela criança exclusivamente como meio de comunicação para
assumir um papel preponderante na representação, organização e interação com o
meio ambiente. Cabe à linguagem ordenar a experiência e estabilizar o mundo caótico que a criança enfrenta e, com isso, irá aos poucos propiciar as operações intelectuais que ocorrem em nível abstrato. Dessa forma, a criança pode pouco a pouco se libertar do mundo concreto,limitado à experiência imediata. O domínio da
linguagem é, pois, condição essencial para que o ser humano seja capaz de relembrar, planejar,raciocinar e direcionar sua vida.
Radino, por sua vez, nos coloca que:“Com a ajuda da fantasia, a criança constrói
uma linguagem pré-verbal, fazendo uma ponte entre seus mundos interno e externo. Essas primeiras experiências estão em íntima conexão com o processo de simbolização e,posteriormente, de sublimação, tão importantes para nossa inserção em um mundo cultural e social.” (Radino, 2003, p.26)
8. AS HISTÓRIAS, O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E O INCENTIVO À LEITURA
Para Radino (2003, p.119), ao ouvir histórias, as crianças concentram-se, aprendem a
respeitar-se e, acima de tudo, passam momentos de grande prazer. A criança poderá ler melhor quando tiver o hábito de imaginar o que lê. Além da função emotiva, os contos de fadas também têm uma função pedagógica, pois auxiliam na construção do ser imaginário, que ensina a forma e a razão, sendo também o primeiro contato da
criança com o universo literário.
Segundo Bettelheim (1988, p. 242-243),em geral, os adultos não percebem que a
alfabetização, que vêem como um empreendimento racional e uma típica realização
do ego, só pode acontecer se a criança,inicialmente, e por algum tempo depois,
vivenciar a leitura como satisfação da fantasia – como a brincadeira – e como uma mágica poderosa. A criança que gosta muito de ouvir histórias que estimulam e satisfazem sua fantasia desejará também ler sozinha esses contos maravilhosos quando ninguém estiver disponível para fazê-lo. Mas, se não experimentou o prazer
de terem lido para ela, não ficará facilmente interessada em aprender a ler. Não tendo essa experiência, duvidará que aprender a ler seja uma coisa que queira fazer, e o trabalho duro que aprendizado envolve parecerá não valer a pena.
Para o autor, a aquisição de habilidades,inclusive a de ler, fica destituída de valor quando o que aprendeu a ler não acrescenta nada de importante à nossa vida (Bettelheim, 1980, p.12). Já para Radino:
“O ato de ouvir histórias auxilia a criança no seu processo de alfabetização, pois quanto mais histórias ouvir, mais ela aguçará sua capacidade de imaginar a situação apresentada e desenvolver seu mundo simbólico. Histórias que contêm material rico para estimular a fantasia propiciam satisfações imaginárias que demonstram o valor e o mérito da leitura.”(Radino, 2003, p. 175)
A autora nos coloca ainda que, ao introduzir as crianças em um mundo rico de simbolizações, as histórias infantis podem auxiliar no seu processo de alfabetização pois, ao ouvir uma história, a criança aprende a imaginar o que evoca a palavra presente e presentificada e,aos poucos, aprende a memorizar o seu enredo.
Desta forma, os contos de fadas podem ser um importante instrumento pedagógico visto que, ao transmitem uma linguagem simbólica, necessária para a inserção da criança em um mundo letrado,ativam a memória, ampliam o vocabulário, entre outros benefícios (Radino, 2003, p. 119).
Segundo Kaercher (2001, p.82):
“É destas práticas, de ouvir e contar histórias,que surge nossa relação com a Leitura e a literatura. Portanto, quanto mais acentuarmos no dia-a-dia da Escola Infantil estes momentos,mais estaremos contribuindo para formar crianças que gostem de ler e vejam no livro, na leitura e na literatura uma fonte de prazer e Divertimento.”
9. A FORMAÇÃO DE UMA ATITUDE POSITIVA DIANTE DA VIDARadino (2003, p.134-135), nos coloca que muitos adultos consideram os finais felizes como irreais e, de alguma forma, prejudiciais à criança. Como alimentar uma criança com a fantasia de
que se tornará princesa se a realidade mostra uma vida dura que ela terá que enfrentar? Elas nunca serão princesas, nem terão um casamento maravilhoso e nem serão felizes para sempre. A autora, porém, considera que nenhuma criança acredita que será um príncipe ou uma princesa,mas que poderá governar sua própria vida. O
final feliz mostra justamente que a criança tem condições de superar seus conflitos e atingir a maturidade. Além disso, se não dermos a possibilidade de a criança acreditar em seu futuro de forma otimista, ela deixará de acreditar em si mesma e não conseguirá seguir adiante e vencer suas dificuldades. Desta forma, a imaginação
infantil é nutrida e assegurada por estes finais felizes, pois apesar de encontrar obstáculos, a criança aprende que poderá superá-los e amadurecer.
Nesse sentido, Bettelheim (1980, p.14),nos coloca que esse final feliz não se refere a uma realidade exterior, mas, sim, à segurança de que a criança conseguirá superar seus conflitos e se tornar independente.
“O pedido de conte outra vez, é uma forma da criança apropriar-se de suas emoções e elaborálas. A partir daí, poderá recontar a sua história,dramatizá-la e brincar com sua realidade interna. Como um brinquedo, utiliza o simbolismo dos contos de fadas para dar expressão às suas angústias. Fazendo uso dos personagens, tanto bons como maus, ela pode identificar-se com cada um deles, em diferentes momentos, assim que sua necessidade seja despertada. Os contos mostram que o amadurecimento é ao mesmo tempo difícil e possível, podendo fazer a criança encontrar um final feliz, como o herói de sua história preferida.” (Radino, 2003, p. 143)
10. A HORA DO CONTO COMO FACILITADORA NA RELAÇÃO ENTRE EDUCADOR E EDUCANDO
No contexto educacional, os contos de fadas e, de um modo geral, as histórias nfantis,podem ser um rico instrumento de trabalho, não como uma cartilha, mas preservando sua função original: de instruir e distrair.
Conforme Radino (2003,p.216):“Os contos de fadas podem auxiliar na educação, justamente porque eles ajudam aluno e professor a um autoconhecimento e, de forma
agradável e poética, revelam o inconsciente.”
Para a autora citada, compartilhar um conto e acolher a fantasia infantil significa
acolher a criança em sua integridade. Dessa forma, ela sentirá que não está só e que suas emoções não são assustadoras, mas pertencem à natureza humana e podem ser controladas. A verdadeira educação deve respeitar e aproveitar a natureza infantil. Se sua fantasia e sua emoção puderem ser integradas em seu processo de desenvolvimento e conhecimento, a criança sentir-se-á respeitada e terá condições de
ingressar em um mundo social e cultural (Radino, 2003, p.219).
Segundo a autora, apesar de ouvirmos poucas histórias atualmente, guardamos na
memória, mesmo que muito distante, um conto preferido ou alguma história inventada. Essa história não é só importante pelo seu conteúdo,mas por tudo o que representa. Faz-nos recordar uma infância, um carinho de mãe, pai, avó,
professora, etc. (Radino, 2003, p.219-20).
Bettelheim (1980, p.61) por sua vez, nos coloca que, ao se contar uma história, deve haver uma cumplicidade com a criança. Ambos, adulto e criança, podem compartilhar dessa experiência.
Quando um adulto começa a contar histórias à criança, aos poucos ela começa a escolher a preferida. Se houver um entrosamento, o prazer da criança faz com o adulto partilhe dessa experiência.
Para Radino (2003, p. 184):“A ressonância na criança do prazer sentido por uma professora que conta uma história simplesmente porque gosta de fazê-lo, é completamente diferente do de uma professora que conta para cumprir uma atividade, uma obrigação.”
Por fim, Coelho (1986, p. 32) considera que contar histórias é um ato de amor, é um
momento de intimidade entre o adulto e a criança e, por isso, pode contribuir com o
relacionamento.
11. ENTREVISTAS COM AS EDUCADORAS
O modelo de entrevista realizado neste trabalho foi proposto por Bleger (1980, p.54),
que a considera como um importante instrumento na técnica de investigação ientífica. O autor propõe dois modelos de entrevista: fechada e aberta. A entrevista fechada funciona como um questionário em que as questões são previamente determinadas e não há maleabilidade em alterálas.
Para este trabalho optamos pela entrevista aberta, visto que neste modelo há maior
liberdade para realizar perguntas e intervenções.Segundo o autor, essa maior flexibilidade permite ao entrevistado configurar o campo da entrevista, em função das características de sua personalidade, facilitando a interação entre entrevistador e entrevistado, possibilitando uma investigação mais ampla (Bleger, 1980, p. 56).
Foram entrevistadas quatro professoras de uma escola municipal da periferia de São Paulo e quatro professoras de uma escola tradicional da rede particular do mesmo município, num total de oito entrevistadas, com idade entre 24 e 41 anos.
Todas as entrevistadas possuíam formação com nível Superior, tendo algumas cursado o
Magistério em nível médio e todas com curso completo em áreas como Letras, Artes Plásticas,Psicologia e em sua maioria a Pedagogia, com o tempo de exercício variando entre 6 e 22 anos de magistério.
Ao serem indagadas sobre a utilização de histórias infantis em sua rotina de trabalho, todas as entrevistadas afirmaram ser esta uma atividade freqüente e, em alguns casos, diária. A escolha das histórias, na maioria das vezes, se dá em
função de temas relacionados ao trabalho pedagógico realizado em sala de aula, como
complemento para atividades ou projetos. Em alguns casos a escolha é feita também pelos alunos. M., uma das professoras da escola particular, colocou o seguinte:
“Procuro escolher as histórias a partir das necessidades do grupo, ou na maioria das
vezes, apresento o “livro surpresa”, no qual este é embrulhado e apresentado com um
suspense: a hora da história já vai começar e eu quero ver que história vai ser...”
Para apresentar as histórias aos alunos as entrevistadas utilizam os mais variados recursos;contudo, a leitura a partir de livros é a forma mais utilizada. Em geral, utilizam fantoches,figuras ilustrativas, objetos e fantasias. Em
alguns casos pode-se perceber uma preocupação com a dramatização e a entonação de voz.
Quanto às dificuldades encontradas para contar histórias, várias professoras citaram a falta de atenção dos alunos e a existência de ruídos externos. S., professora da escola municipal, diz: “No início do ano, quando os alunos não possuem o hábito de ouvir histórias, eles se mantêm dispersos, falta atenção e, mas, aos poucos, eles vão aprendendo a ouvir e isto é muito importante.”
Segundo as entrevistadas, ao ouvirem histórias, as crianças se envolvem e interagem,
demonstrando interesse e atenção. Ficam mais calmas e concentradas, muitas vezes associando os enredos a situações do dia a dia e, quando gostam, comentam sobre os personagens por vários dias e, em alguns casos, brincam de representar as histórias durante as brincadeiras livres.
É unânime entre as entrevistadas a percepção da importância das histórias no
desenvolvimento de seus alunos e, ao ser pedido que relacionassem algumas dessas contribuições,citaram: o desenvolvimento da linguagem,expressão corporal, o ouvir, a oralidade, a espontaneidade, facilidade futura na produção de textos, na organização do pensamento, ampliação de vocabulário, na afetividade, nas relações com os colegas, na imaginação e concentração.
Quatro professoras afirmaram ter recebido algum tipo de preparo para o trabalho com
histórias infantis durante a formação. Contudo,algumas disseram receber algum tipo de
incentivo nas escolas em que trabalham, através de palestras e cursos oferecidos pelas instituições.
Dentre as entrevistadas, três disseram não ter tido contato com histórias infantis na infância,enquanto as demais relembraram momentos em que mães, tias, avós e até mesmo professores lhe contaram histórias. Um aspecto interessante a ser
observado é que as professoras que tiveram as histórias presentes em sua infância demonstram maior entusiasmo ao relatarem o trabalho que realizam com as histórias sendo que o mesmo aconteceu com as que recebem estímulos para este tipo de atividade através de cursos ou palestras de capacitação.
Ao compararmos as respostas das professoras das duas escolas, notamos, como um
aspecto comum, o fato de todas afirmarem que as histórias estão muito presentes em seu trabalho,porém, com relação à maneira como estas são apresentadas às crianças, percebemos entre as professoras da escola particular uma maior variedade na forma como contam as histórias e nos recursos utilizados, enquanto as professoras
da escola municipal, em sua maioria, as contam apenas com o auxílio dos livros. Acreditamos que este seja um reflexo dos cursos de capacitação, oferecidos pela instituição de ensino particular aos professores, e que são voltados para este universo temático.
Com relação às informações obtidas com as entrevistas, convém ressaltar que as opiniões podem ter sido expressas com base em um modelo idealizado de educadora que cada uma possui de si, podendo muitas vezes não corresponder ao real.
12. CONCLUSÕES
A maneira de ver a criança e o tratamento dado a ela passou por inúmeras mudanças ao
longo da história da humanidade. De adulto em miniatura a criança passou a ser o objeto de estudo de inúmeras teorias do desenvolvimento,denotando uma preocupação com esta importante etapa da vida humana. Junto a essas mudanças surgiu a literatura infantil, refletindo também,com o passar dos anos, a concepção de criança,pois, se antes não havia um tratamento diferenciado para as crianças, não havia também a necessidade de um acervo cultural próprio para elas. À medida que a criança recebe diferentes olhares, os contos e as histórias vão se modificando de modo a acompanhar estas mudanças. Em meio a este processo, houve um momento em que a fantasia foi desconsiderada e as histórias destinadas às crianças passaram a ter enredos baseados na realidade e a atender as necessidades de uma sociedade moralista.
Nos dias atuais há uma volta do “maravilhoso”. A cada dia são produzidas novas
histórias, livros de literatura infantil e materiais para crianças e, nesta enxurrada capitalista, há de se questionar o valor de cada um deles.
As histórias infantis estão presentes no dia a dia das escolas de educação infantil e, segundo as opiniões correntes, oferecem inúmeras contribuições às crianças em desenvolvimento.
No campo emocional, podem ajudar as crianças a elaborar e vencer dificuldades
psicológicas bastante complexas, pois oferecem a possibilidade de se construir uma ponte entre o mundo inconsciente e a realidade externa, visto que há em cada história uma linguagem simbólica que se comunica diretamente com o
inconsciente e, mesmo que a criança não expresse sua compreensão acerca da mensagem
contida na história, isto não significa que esta não foi assimilada.
Segundo Coelho (1986, p.12): “A história é importante alimento da imaginação. Permite a auto-identificação,favorecendo a aceitação de situações desagradáveis, ajuda a resolver conflitos,acenando com a esperança. Agrada a todos, de modo geral, sem distinção de idade, de classe social, de circunstância de vida.” As histórias são fontes de prazer para a criança. Ajudam a formar a personalidade e auxiliam na organização do pensamento infantil,oferecendo estímulos para a imaginação da criança.
Ao passo que oferecem um palco onde a criança pode projetar os mais diversos personagens internos, os contos são um meio para a criança experimentar de maneira
simbólica as maneiras de agir em relação ao outro e também de compreender as reações
desencadeadas por seus atos. Desta forma,conhecem o bem e o mal e encontram um
referencial que lhes ajudará na escolha da pessoa que virá a se tornar ou na maneira como irá agir,podendo perceber as vantagens da virtude,formar uma consciência ética e construir sua identidade.
O estímulo à leitura pode se dar a partir do contato com histórias, desde a mais tenra idade,quando a criança encontra nelas uma maneira de viajar em aventuras fantásticas e viver em outro mundo, encontrando o prazer e associando-o aos
livros. Há desta maneira um incentivo real para a aprendizagem da leitura e da escrita, pois se a criança pôde experimentar o prazer por terem lhe contado histórias quando pequena, cedo descobrirá o valor da leitura.
O momento de ouvir histórias pode ser extremante prazeroso para ambos, adulto e
criança, pois, ao partirem juntos nessa vigem fantástica, se tornam mais próximos e esta passa a ser uma atividade que contribuirá no fortalecimento de vínculo, favorecendo o relacionamento inter-pessoal. Além disso, a criança se fortalece e se sente reconfortada com os finais felizes, criando uma atitude positiva diante da vida.
E, em relação aos educadores, estes, ao se oferecerem como modelo para o processo de
identificação, têm a tarefa de cuidar da criança em sua integridade física,emocional e social,visto que a escola não se restringe à transmissão de conhecimento.
Felizmente, as histórias estão presentes na Educação Infantil, contribuindo com o
desenvolvimento das crianças e lhes dando a alegria e o prazer de transitar por este universo mágico. Resta-nos agora espalhar a notícia, para que esta magia permaneça dentro da escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil –
Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione,
1997.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho.Rio de Janeiro: Campus, 1988.
BLEGER, J. Temas de psicologia, entrevistas e grupos. São Paulo: Marins Fontes, 1980.
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CASHDAN, Sheldon. Os sete pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas. Rio de Janeiro:Campus, 2000.
COELHO, Betty. Contar histórias – Uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1986.
COELHO, Nelly N. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.
COELHO, Nelly N. O conto de fadas: símbolos,mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003.
COELHO, Nelly N. O imaginário infantil e a educação. Brasília: Revista Criança do
Professor de Educação Infantil, 2005.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu (1913[1912-13]). In: Edições Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIII
GILLIG, J. M. O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
GOUVEIA, Maria H. Viva e deixe viver:histórias de quem conta histórias. São Paulo:
Globo, 2003.
GUTFREIND, Celso. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na terapia da criança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
HELD, J. O imaginário no poder, as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus,1980.
LAPLANCHE, Jean e PONTALIS, J. B.Vocabulário de Psicanálise. São Paulo:Martins Fontes, 1992.
MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias.
São Paulo: DCL, 2004.
PRIETO, Heloísa. Lá vem história: contos do folclore mundial. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997.
RAPPAPORT, Clara R. e FIORI, Wagner R.Psicologia do Desenvolvimento: A idade
pré-escolar. São Paulo: EPU, 1981.
RIBEIRO, Ana C. F. e STEFANO, Ana P. B.Extra-extra: histórias infantis pedem
competências de ensinar em casamento.
Disponível em:http://www.ufsm.br/gepeis/artigos Acesso em 25/02/2005.
TRAÇA, M. E. O Fio da Memória, Do Conto Popular ao Conto para Crianças. Porto: Porto
Editora, 1998.
VIEIRA, Isabel M. de C. O papel dos contos de fadas na construção do imaginário infantil.
Brasília: Revista Criança do Professor de Educação Infantil, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.


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quinta-feira, junho 12, 2008


 

POR UM ESPAÇO ESPECIAL PARA A LITERATURA NA ESCOLA [1]


por Anna Claudia Ramos e Luiz Antonio Aguiar [2]



"Teatro e literatura andam de forma bastante paralela, principalmente quando se refere a instutuição escola. Por isto resolvemos publicar este texto de Anna Cláudia Ramos e Luiz Antônio Aguiar, e toda esta reflexão pode e deve ser feita sobre o teatro infantil na escola."
carlos augusto nazareth

Quando pensamos na Literatura nas escolas, é necessário situar alguns pontos de princípio que nos servem aqui de referência.
Em primeiro lugar, devemos deixar claro que falamos a partir de uma posição que recusa as idéias de desescolarização da leitura, mas que privilegia, sim, a abertura da instituição escolar à especificidade generosa da Literatura.
Em segundo lugar, quando privilegiamos a Literatura e não genericamente a Leitura, é porque, não somente por sermos escritores, mas também baseados em nossa experiência como divulgadores da leitura, compreendemos (e constatamos) que nada tão poderoso quanto a Literatura para animar as pessoas para se apropriarem do mundo da palavra. Nada como a reflexão, o prazer e entretenimento, e a fruição estética que a Literatura pode proporcionar para alargar a nossa humanidade interior. Nada como a Literatura, essa experiência de milênios de encantamento da palavra promovida (e movida) pela humanidade para nos tentar a entrar para o mundo dos heróis, das aventuras, da exposição da alma humana e da exploração do sentido de tudo que há e nos cerca. Nada como a Literatura, que ergue um defunto da tumba e o transforma em autor; e faz, de uma boneca de pano, gente que reforma a natureza e subverte o poder do tamanho, para nos defrontar com a multiplicidade disso que chamamos de realidade.
É por isso que a palavra de ordem central da AEILIJ, que nos inspira e orienta é Pela democratização da Literatura no Brasil .
Em terceiro e último lugar, é necessário apontar também que ao lado de heróicos, idealistas, sonhadores, quixotescos, emilianos, bovarianos, professores e bibliotecários, agentes de leitura de vários tipos, que em seu cotidiano, na sala de aula, nas bibliotecas e nas salas de leitura, lutam para reunir a Literatura à vida de seus alunos, temos também procedimentos arraigados na instituição escolar que ressecam a Literatura e privam seus alunos justamente do seu poder de encantamento.
E não se pode dizer que o próprio MEC não reconheça a necessidade de um espaço especial para a Literatura nas escolas. Num documento do MEC (“Orientações Curriculares para o Ensino Médio”, 2006, p.55) que trata da Literatura no Ensino Médio lemos: “Estamos entendendo por experiência literária o contato efetivo com o texto. Só assim será possível experimentar a sensação de estranhamento que a elaboração peculiar do texto literário, pelo uso incomum de linguagem, consegue produzir no leitor, o qual, por sua vez, estimulado, contribui com sua própria visão de mundo para a fruição estética. A experiência construída a partir dessa troca de significados possibilita, pois, a ampliação de horizontes, o questionamento do já dado, o encontro da sensibilidade, a reflexão, enfim, um tipo de conhecimento diferente do científico, já que objetivamente não pode ser medido. O prazer estético é, então, compreendido aqui como conhecimento, participação, fruição. Desse modo, explica-se a razão do prazer estético mesmo diante de um texto que nos cause profunda tristeza ou horror”...
Como se vê, uma formulação bastante avançada e em nada diferente da que a AEILIJ, desde as definições do seu I Encontro Nacional, em 2004, vem defendendo. Por que então a defasagem entre essa orientação e a realidade de grande parte da instituição escolar, que trata Literatura como um acessório das disciplinas do currículo?
Em grande parte dos estabelecimentos de ensino, predomina ainda a visão paradidática, a didatização da Literatura. O que se pretende nesse caso é uma justificativa para a introdução da Literatura na aula, e no caso uma justificativa sobre sua utilidade, como se a Literatura em si não fosse um dom, atributo e direito do ser Humano. No uso paradidádico, o leitor que se tenta formar ¾ e que por entrave intrínseco ao método não se consegue de fato formar, ao cabo da vivência escolar – é uma criatura- leitor diferente dos seres-leitores que existem no mundo. Na verdade, uma criatura-leitor específica, que só existe nesse ambiente.
O ser-leitor que existe no mundo, o leitor mundano, exerce seu direito de escolha sobre qual livro vai ler, lê como uma experiência individual, subjetiva e mesmo afetiva, lê sem pressões de avaliação, sem cobranças, pode parar de ler um livro se não gostar dele. Alguns, até mesmo freqüentam eventos como feiras de livros, onde têm contato com autores e discussões sobre Literatura & Vida.
A criatura-leitor didatizada é totalmente diferente. Não tem direito de escolha, é cobrado pela leitura, e sua leitura não é pessoal, mas tem de se orientar para responder a provas etc... – é uma leitura padronizada, ou gabaritada (submetida a gabarito). Uma leitura que a priori deve entender o que se acha que há para ser entendido, nem diferente, nem menos, nem mais, naquela obra em particular e na Literatura como um todo. Não há desafios nem recriações. Não há apropriação da obra pelo leitor. Trata-se aqui de um leitor para quem a Literatura é deturpada a ponto de se transformar em algo não dessemelhante às antigas aulas de moral e cívica, ou aos famigerados Estudos de Problemas Brasileiros, que a ditadura das décadas de 60 a 80 impôs ao ensino em diversos níveis.
O leitor que se produz nesse modo didatizado se satisfaz com resumos – que garantem a aprovação. O outro, o leitor mundano, lê para experimentar “profunda tristeza ou horror”, através da Literatura. Ou alegria. Ou êxtase. Ou seja o que for. É um leitor que é lançado, pela Literatura, na busca do Santo Graal, ou, em seu íntimo, da terceira margem do rio.
Um exemplo emblemático da redução/deturpação do modo paradidático está nos chamados temas transversais. Com vantagens no que se refere à integração das disciplinas curriculares, quando entretanto aplicados mecanicamente à Literatura, esses temas provocam uma reação em cadeia que reduz o potencial humanizador (e transcendente) da Literatura ¾ expresso numa linhagem de ilustres autores, vindo do Machado de Assis do conto Umas férias, passando por Monteiro Lobato e chegando a Bartolomeu Campos de Queirós, Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga e muitos outros ¾ a seis tópicos estanques. Cada um desses tópicos reflete uma preocupação doutrinária de quem os formulou, mas o caso é que nem de longe podem expressar uma Literatura que, por sua grandeza milenar, sempre buscou a totalidade dos temas e do ser humano.
Por que temas transversais não podem ser amor, amizade, medo, o que é o universo?, enigmas e mistérios, a perda, por que uma tradução para a palavra paradoxo é “admirável”?, os desejos, ou ainda o contra senso e o tesouro expressos pela palavra “verossimilhança”, ou outros afins, tanto etéreos quanto capazes de penetrar em meandros da inteligência e do espírito (e talvez nos sentimentos e mesmo nos sonhos) de cada um? Por que devem ser ¾ esses temas que em cadeia, em muitos casos, norteiam as adoções nas escolas, os catálogos das editoras e as compras governamentais ¾ temas fechados, ou seja, verdadeiras perguntas retóricas lançadas sobre a criatura-leitor-didatizado, com resposta gabaritada à la rigidez do certo¹ errado? Quando é que a escola vai se abrir para o ± da Literatura?
Não se pode formar uma criatura-leitor-didatizado esperando que ele, sabe-se lá como, se transforme num ser de outra natureza, num ser-leitor-mundano. Não se estão formando leitores para o mundo, nesse modo fechado, mas como se a vivência leitora se restringisse à escola. O que precisamos é que a escola abra espaço para a leitura da Literatura como ela existe no mundo e forme leitores que serão leitores em seu cotidiano, em suas vidas, no mundo! ... Algo que só entende e acolhe quem ama a Literatura. Sem precisar de justificativas práticas para isso.
Esse ser leitor pede um animador, um orientador, um mediador; um professor, formado para isso, ou nas próprias faculdades, ou em programas de formação continuada, como o que tivemos neste país um dia, o PROLER – que precisa ser urgentemente revitalizado. Claro que se necessita também de uma reformulação dos cursos de Letras e de Magistério (para incluir a formação para a leitura de Literatura)... pela reformulação do vestibular, para que este cobre menos história da Literatura (estilos, escolas de época) e mais a impressão pessoal, criativa da leitura Literária (impossível de se conter numa múltipla escolha)... pela proliferação de bibliotecas públicas, de clubes de leitura nas escolas, nas comunidades... e outras iniciativas.
A discussão sobre o caráter particularíssimo da inserção da Literatura na escola é central para quem deseje na prática efetivar a ampliação do público leitor brasileiro e a democratização da Literatura. E principalmente é necessário que quem gosta de ler, quem ama a Literatura, quem defende uma Literatura autônoma, livre de proselitismos, doutrinarismos e de didatismos, exija mudanças capazes de transformar o momento do encontro da criança e do jovem com a Literatura, na escola, como um momento também de recriação do mundo e da própria vida de cada um.

[1] Palestra apresentada ao COLE 2007, no Seminário FNLIJ de Literatura Infantil e Juvenil.
[2] Anna Claudia Ramos e Luiz Antônio Aguiar são escritores e representam a Associação dos Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ)


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domingo, junho 08, 2008


 

O TEATRO - PERSPECTIVAS



por Carlos Moreno


No estudo de uma peça de teatro, da perspectiva literária, interessa especificamente o texto, bem mais do que o espetáculo em que este se concretiza. Analisado como objeto de código lingüístico, o texto de teatro passa, então, a ser considerado em termos de diálogo e indicações cênicas. Outra questão fundamental na análise do texto de teatro é a caracterização da obra selecionada quanto ao gênero. Senhora dos Afogados, por exemplo, é denominada tragédia por seu próprio autor, Nelson Rodrigues. Na tentativa de compreender tal gênero, é recordada também a definição aristotélica. Há quem negue a possibilidade da tragédia no mundo moderno. Mas a luta do herói trágico contra forças poderosas, originalmente ligadas ao arbítrio divino, teria sido substituída hoje em dia: os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria falha interior.
No estudo de uma peça de teatro, da perspectiva literária, interessa especificamente o texto, bem mais do que o espetáculo em que este se concretiza. De qualquer forma, a leitura de um texto teatral supõe pelo menos a construção de uma representação imaginária, já que o teatro, como indica Anne Übersfeld, é uma prática cênica e não um mero gênero literário [1]. Analisado como objeto de código lingüístico, o texto de teatro passa a ser considerado em termos de diálogo e indicações cênicas.
Sobre a experiência teatral, comenta Maria do Carmo Peixoto Pandolfo:
O teatro (etimologicamente "lugar de onde se vê") conjuga recitantes e espectadores numa identificação espiritual e readquire assim a acepção originária de local privilegiado onde se desenrola um rito religioso [2].
Aristóteles, na Poética, distingue a mimese "na forma narrativa" daquela em que as "pessoas agem e obram diretamente", ou seja, em que se processa a representação da ação (em gr. drama). O que aqui recolhemos desta distinção vem a ser o embate dos diálogos, a que se acrescentam, não menos importantes, o não-dito e o silêncio. Senhora dos Afogados (SA), por exemplo, é denominada "tragédia" por seu próprio autor, Nelson Rodrigues (NR). Na tentativa de compreender tal gênero, vale recordar a definição aristotélica:
A tragédia é a imitação de uma ação séria e completa em si mesma, de certa extensão; em linguagem tornada agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; em uma forma dramática, não numa forma narrativa; com incidentes que suscitam a compaixão e o terror, para obter a purificação de tais emoções [3].
Segundo Junito de Souza Brandão, a teoria da mimese e da catarse é o instrumento empregado por Aristóteles para separar a arte da moral [4]. Embora o mito em sua forma bruta seja a matéria-prima da tragédia, ela é “imitação (mimese) das realidades dolorosas, que são poeticamente apresentadas”, passando, assim, para um outro plano, próprio da realidade artificial que constitui a arte. Paralelamente, como "Catarse, kátharsis, significa na linguagem médica grega, de que se originou, purgação, purificação"[5], a tragédia alivia com o terror e a piedade a matéria bruta dos mitos para torná-los esteticamente operantes. Em SA, de modo semelhante, a brutalidade na abordagem da questão do incesto é aliviada pelo processamento artístico.
Graças ao equilíbrio estabelecido pelo poeta, "a tragédia 'purificada' vai provocar no espectador sentimentos compatíveis com a razão" [6]. O próprio NR procura conferir um caráter aristotélico a seu teatro, quando explica por que a “ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz”:
O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós[7].
Em Aristóteles, o herói trágico é o homem que cai no infortúnio, não por ser perverso e vil, mas por causa de algum erro [8]. Assim, a reviravolta na fortuna do herói não deve nascer de uma deficiência moral, mas de grave falta cometida. Entretanto, tal transformação não implica necessariamente num desfecho infeliz para a tragédia. O transe da infelicidade para a felicidade é nela admitido[9]. Nesse sentido, é possível distinguir o “conflito trágico fechado”, em que há a passagem da ventura à desdita, como em Antígona, da “situação trágica”, em que a mudança é da desventura à felicidade, como na Oréstia[10]. Junito de Souza Brandão explica que “o trágico pode não estar no fecho, mas no corpo” da peça:
Chamamos, por isso mesmo, tragédia à peça cujo conteúdo é trágico e não necessariamente o fecho [11].
O conteúdo da tragédia talvez possa ser relacionado ao sentimento trágico da vida, definido por Miguel de Unamuno como “ponto de partida pessoal e afetivo de toda a filosofia e de toda a religião” [12]. Nesse sentido, o pensador discute a condição humana:
O homem - diz-se - é um animal racional. Não sei por que não tem sido chamado um animal afetivo ou sentimental. E talvez até que o que mais o diferencie dos outros animais seja o sentimento e não a razão [13] .
Por outro lado, Jean-Marie Domenach comenta que o delírio passional é incapaz de constituir a tragédia se outros elementos não intervêm, já que a linguagem trágica não apenas obseda o personagem, aprisionando-o em sua paixão, mas também serve para distanciá-lo de si mesmo, fazendo surgir “sob o eu passional um ser mais profundo, uma lucidez que está além da consciência ou da inconsciência” [14].
A tragédia, segundo Domenach, está, portanto, ligada a um equilíbrio de sombra e luz, de consciência e perda de si, oscilando entre dois extremos aparentemente contraditórios. De um lado, a falta inconsciente e a punição desmerecida, ou seja, a atmosfera pesada e fechada da fatalidade; de outro, um mundo, de aparência brilhante mas enganosa, de liberdades heróicas, exaltado de honra e de sacrifício:
O mistério trágico é constituído quando se misturam um ao outro os dois elementos, na sua maior pureza e na sua mais estreita unidade: o querer humano e a essência inumana da fatalidade [15].
De acordo com Domenach, o trágico corresponde ao “pressentimento de uma culpabilidade sem causas precisas e de que, no entanto, a evidência não é propriamente discutida” [16]. Segundo o pensador, o trágico não se confunde com a tragédia, mas é ela que nos permite caracterizá-lo:
Para que o trágico se manifeste, é necessário que um dispositivo metafísico duplique o dispositivo humano, e que uma depuração se produza, atraindo a transfiguração característica da tragédia [17].
Segundo Pandolfo, a tragédia grega surge precisamente quando o herói mítico deixa de ser modelo para constituir-se em problema, pois "ela confronta, graças ao racionalismo nascente, os valores tradicionais veiculados pelas narrativas míticas com as novas práticas sociais e religiosas da época (século V. a.C.)" [18]. Tal tensão aparece na própria estrutura da tragédia: ao coro, “personagem coletivo, anônimo”, se opõe o herói do passado, “personagem individualizado, de condição nobre”:
O próprio personagem trágico se constrói na tensão dialética estabelecida entre a intencionalidade do ato, decorrente do exercício da liberdade humana (ETHOS), e a injunção do destino, fixado pelos deuses, e que se perde em uma anterioridade sempre presente (DAIMON). Por isso é agente e paciente, culpado e inocente, lúcido e incapaz de compreender, dominador e dominado. Para Vernant, a essência do trágico decorre da coexistência destas duas forças, da simultaneidade destas duas pulsões [19].
O gênero trágico é, em resumo, caracterizado pelo uso da máscara, signo da metamorfose, pelo coro, representante da coletividade dos cidadãos, e pela ação do herói [20]. Além disso, deve haver um acontecimento aterrorizante, “representado pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o regicídio” [21].
Gerd Bornheim vê o teatro ocidental fundamentado em duas estéticas distintas, sendo que a primeira é a formulada por Aristóteles, e a segunda é a que caracteriza o teatro medieval, os elizabetanos e o Século de Ouro espanhol basicamente [22]. Para ele, as duas estéticas coincidem no princípio da imitação e na finalidade do teatro (a catarse), mas divergem no modo como entendem a estruturação do texto:
Os medievais entendem o texto de modo mais solto, composto de cenas mais ou menos independentes e cuja ordem pode até ser modificada. Um exemplo disso, existente ainda hoje, é a via sacra: cada estação é uma pequena peça que quase vale por si. Já Aristóteles entendia o teatro com um rigor bem maior; para ele uma peça tinha que ser um todo completo e fechado em si mesmo. Aristóteles postula a unidade de ação, e essa unidade se desdobra em atos que ocupam um lugar exato e que correspondem ao princípio, ao meio e ao fim da ação [23].
A partir de Aristóteles, os textos teatrais são considerados como filiados aos gêneros básicos da tragédia e da comédia. Contudo, no prefácio de Cromwell, manifesto estético do romantismo, Victor Hugo preceitua a adoção de um texto que passa naturalmente da comédia à tragédia, do sublime ao grotesco:
"Preferiu-se denominar drama esse novo gênero compósito, e daí por diante o teatro desrespeitou sem pejo as classificações tradicionais" [24].
Magaldi aponta que há quem negue a possibilidade da tragédia no mundo moderno, uma vez que a partir do cristianismo se desenvolveu a idéia do livre-arbítrio, incompatível com os postulados da religião grega [25]. A luta do herói trágico contra forças poderosas, originalmente ligadas ao arbítrio divino, teria sido substituída hoje em dia:
Os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria falha interior [26].
Dentro dessa acepção ampla é que, segundo o crítico, poderiam ser consideradas tragédias, por exemplo, Electra enlutada, de Eugene O’Neill, e A morte de um caixeiro-viajante, de Arthur Miller. Quanto às rodriguianas SA, Álbum de família (AF), Anjo negro (NA) e Dorotéia (D), Magaldi comenta que sua substância mítica as inclui necessariamente no gênero trágico, sendo que, nelas, a fatalização estaria no relacionamento familiar [27]. De qualquer forma, ele assinala que, liberto da fatalidade, o drama, compreendendo as peças consideradas sérias, seria mais condizente com os conflitos do cristão, que podem ser resolvidos pelo arrependimento e pela penitência [28]. Por outro lado, afirma que o teatro de hoje procura “refletir, até nos gêneros, a dissociação do homem contemporâneo [29]. Já Domenach situa da seguinte forma o nascimento e a evolução do gênero trágico:
A tragédia começou logo que os deuses da Grécia emigraram para o Olimpo, e o ciclo trágico se reabriu com a morte do Deus dos cristãos. De novo os homens se revoltaram, tentaram se apropriar dos poderes divinos. Então, eles se chocaram contra o destino, conheceram seus limites. Procuraram escapar à obsessão da culpabilidade, que era neles como a presença negativa de Deus. O momento de agir chegou. Matar Deus é erigir o homem, mas é também ressuscitar um Deus de rosto desconhecido[30].

Carlos Moreno é Doutor em Semiologia (Letras) pela UFRJ e Professor do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da UERJ
Bibliografia
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• BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1985. 120 p.
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