Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



segunda-feira, setembro 25, 2006


 

Revisitando Lucia Benedetti


Aspectos do Teatro Infantil 1969 - RELEITURA COMENTADA


por carlos augusto nazareth



PARTE I
Pouquíssimos são os livros que fazem uma reflexão sobre o teatro infantil, ainda hoje. O fato de Lucia Benedetti, a precursora do teatro infantil profissional ter escrito em 1969 um livro sobre as questões do teatro para crianças é um feito de valor incontestável. Mas passados quase quarenta anos de sua primeira edição é necessário que se faça, hoje, uma leitura crítica, lendo o livro inserido em sua época e cotejando princípios e conceitos com a contemporaneidade.
Lucia Benedetti começava a puxar os fios das origens do teatro infantil, de sua linguagem, de seus “princípios” de uma atividade que – de forma sistemática e profissional não tinha nem vinte anos ainda.
A releitura do livro de Lucia Benedetti nos leva a refletir nas origens das questões que hoje se levanta em torno do teatro para crianças, de alguma forma coloca algumas concepções históricas do que seja teatro infantil, por exemplo, expõe conceitos da época, a moral e os costumes vigentes, enfim nos dá uma visão diacrônica da questão, importantíssima de se resgatar e reler com um olho no passado, outro no presente e os dois no futuro.
De início, teatro infantil era, principalmente aquele feito pela criança não para a criança.
E Lucia Benedetti aborda a criança enquanto ator. A criança enquanto agente do ato de representar, que era como se definia na maioria das vezes, o teatro infantil. Não era o teatro feito para crianças, mas o teatro feito por crianças.
Dentro desta abordagem Lucia Benedetti fala do “talento inato” da criança para representar e se refere ao parapsicólogos que chamam a este talento de “talento do inconsciente”
Ainda com uma frágil literatura sobre teatro e sobre teatro infantil, principalmente, o que acontece ainda hoje, L.Benedetti tangencia diversas questões, tentando fazer uma leitura do todo deste fenômeno do teatro para crianças ou do teatro e a criança.
Lucia Bendetti inicia o segundo capitulo de seu livro com uma deliciosa frase “é uma velha ambição da humanidade fazer teatro para crianças” – diz Maria Signorelli em seu “A criança e o teatro”
E Lucia Bendetti fala desde as civilizações antigas, passando pelo Egito, Grécia, Roma, Rússia. Seriam os primórdios, o berço do teatro infantil – Signorelli fala sobre o teatro que serve para adultos e que talvez servisse para crianças. Hoje esta questão já está muito mais complexa do que então. E a autora pergunta:
“ Existe de fato um teatro que pelas suas características possa ser chamado infantil? “ Esta é uma questão que se mantém atual.
E nos reportando às questões primeiras do surgimento da idéia de criança e teatro, Jesualdo, mestre em literatura infantil, coloca questões hoje, acreditamos, bem definidas, principalmente dos anos cinqüenta em diante.
“ ...devemos tomar por teatro infantil as peças que as crianças escrevem, as que os adultos escrevem para elas ou as que elas representam. E há muito seriamente quem ponha obstáculos em peças escritas por adultos para crianças. São por demais “comprometidos”, dizem, para fazer uma literatura adequada.
Aqui Jesualdo coloca o panorama do que seja este confuso universo chamado teatro infantil.
Como especialista em literatura infantil Jesualdo se contradiz, quando fala do adulto escrevendo teatro para crianças. Não seria o mesmo em relação à literatura infantil, já que teatro é literatura também – só que literatura dramática e não épica. Quando fala das crianças que escrevem ou que representam fala do teatro, hoje, na escola, que pode ter esta vertente, dentre as muitas possibilidades que existem. Mas o teatro infantil que se discute hoje é o teatro infantil profissional escrito e feito por adultos para as crianças.
Lucia Benedetti comenta sobre o conceito de aristotélico de “mimesis”, hipótese sublinhando, não a criação artística, mas a pedagogia . “A criança é antes de tudo um pequenino ser que imita. Imita os seus maiores e imita às vezes com tanto ímpeto que os grandes precisam andar com cautela para não dar mau exemplo – e aqui faz um “mix” de pedagogia – ou didática do comportamente - com a “mimesis” Aristotélica. E continua:
Ora, se os grandes não escreverem, os pequenos não terão a quem imitar, nem de quem aprender. Portanto esta hipótese está eliminada – ou seja – o adulto deve escrever para servir de exemplo para a criança imitar - diz a autora.
E aí abrimos a questão para a interpretação sempre equivocada da “mimesis” aristotélica que é sempre tomada como simples imitação de ações, e como o próprio Aristóteles diz, a “mimesis” é a imitação da paixão dos homens – ou seja – o próprio percurso de vida do homem no mundo e suas paixões, motivações que provocam as ações –o importante é o que move “a cena”. Se não resgatamos esta motivação, que sempre é, ao mesmo tempo racional e emocional (emoção+razão=drama), no momento mesmo da representação ou mesmo jogo teatral, não há teatro.
E a autora tangencia uma questão talvez central do teatro adulto/ teatro infantil – quando fala da impossibilidade de se montar Hamlet e da possibilidade de se montar “Arsênico e Alfazema”, que segundo ela tem tantas mortes ou mais que Hamlet.
Mas a questão não é tratar da morte com a criança. A morte faz parte do universo em que vivemos. A diferença são exatamente as motivações- exatamente como diz Aristóteles. As motivações em Hamlet são a vingança, a traição e outros sentimentos que não fazem parte ainda do universo infantil, porque dependem de julgamento de valor, abstrações, deduções, suposições – uma série de procedimentos que ainda não estão desenvolvidos na criança, embora ali em forma embrionário e intuitiva. Mas a outra peça é uma comédia e costumes, onde as mortes acontecem como elementos de um humor absurdo, e sem nenhuma questão metafísica.
E conclui Lucia Benedetti este capitulo falando das origens jesuíticas e cristãs do teatro para crianças feito para ensinar, praticado por D. Bosco, por Anchieta e Padre José Manuel da Nóbrega, para catequisar índios e praticar a art,e mas a arte de educar. Esta origem do teatro infantil deixa vestígios até hoje, quando é moralista, quando pretende ensinar, quando pretende “enformar” e a função do teatro é “desenformar” para poder transformar. Palavras todas de mesma origem “forma” mas com prefixos que as diferenciam e definem estas idéias opostas.


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sexta-feira, setembro 15, 2006


 

A SEMÂNTICA E O TEATRO INFANTIL


A SEMÂNTICA A INFÃNCIA E O TEATRO INFANTIL parte I


por carlos augusto nazareth



O espetáculo teatral infantil está estruturado ou engessado em uma série interminável de palavras, que nomeiam, de forma vaga e por vezes equivocada, o universo do teatro infantil.
Começamos pela palavra infantil. Muitas correntes se recusam a usar este termo por sua conotação pejorativa de coisa menor, que tem uma história que precisa ser discutida.
Infância, s,f (Lat. Infantia ) – Estado ou idade da criança que ainda não fala, por extensão, o primeiro período da vida humana, até os sete anos (1)
(Do latim infans –antis “que não fala”-infantil) (2)
A etimologia da palavra mostra o conceito histórico de criança "a que não fala”, ou seja, a que não tem voz.
Evidentemente a história da criança na sociedade passa por inúmeras fases.
Na Idade Média, o comportamento é marcado pela infantilidade entre todas as faixas etárias. Nota-se que não há um conceito exato de adulto e muito menos de criança.
Sendo assim, a infância se estende apenas até os sete anos. Nessa idade quando passa a ter acesso à língua escrita, o menino de sete anos é um homem em todos os aspectos, exceto na capacidade de fazer amor e guerra.
Nesta época não existia o mundo da infância, as crianças freqüentavam festas em que homens e mulheres alcoolizados se comportavam vulgarmente, sem pudor na frente dos menores
Sintetizando, invisível era a palavra que definia a criança na Idade Média, sem dúvida uma diferenciação entre o mundo medieval e o mundo moderno.
Na modernidade, em culturas onde há diferenças explícitas entre o mundo adulto e o mundo infantil, esses segredos são revelados às crianças, na medida em que elas se encaminham para a fase adulta e quando se acredita que esses segredos sejam assimiláveis psicologicamente.
Para os gregos, a infância é um período fantástico para o aprendizado. É comum se dizer que o que se aprende, quando criança, fica de modo indelével na memória. A cultura grega tem a tendência de considerar a infância como uma fase privilegiada da vida humana.
Se observarmos a questão por uma ótica sócio-política, a criança, assim como as pessoas da terceira idade, são classes não-produtivas e, portanto, não-importantes para o sistema capitalista.
Vemos, historicamente, a infância passar do invisível ao desprezível, como classe produtora e como infantil é o adjetivo derivado de infância, carrega toda esta conotação negativa. Há correntes que renegam este adjetivo e optam por chamar atividades voltadas para a criança como Literatura para criança, Teatro para criança, como se a palavra infantil emprestasse a estas atividades um valor menor.
No entanto, acreditamos que esta postura corrobora esta visão ao invés de modificá-la. Não usar a palavra infantil por quê? Infantil vem de infância, período considerado primordial na formação do adulto.
Muito pelo contrário, temos é que mudar o conceito ou pré-conceito em relação à palavra infantil e usá-la com muito orgulho como em nossa Literatura Infantil, reconhecida mundialmente por sua qualidade e assim definida pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.Ao resgatar o sentido primeiro da palavra infantil estamos transformando o conceito de infantil. E as pessoas alegam, como justificativa, que se usa “Que atitude infantil" - uma forma pejorativa. Sim é verdade, mas isto não empresta nenhuma conotação desabonadora à palavra infantil. Na verdade, a pessoa, em questão, está tendo uma atitude inadequada a sua idade,não que infantil, por si só, seja termo pejorativo. Poderia ser também uma atitude senil – e isto torna as pessoas já acometidas de senilidade seres menores, “desimportantes” ?
Ao invés de mudarmos palavras é necessário mudarmos conceitos, que levam a posturas por vezes rígidas e absolutamente ineficientes.
E em nome desta pequena miscelânea de idéias, diz-se – não há teatro infantil e teatro adulto. O que há é o bom e o mau teatro. E dão como justificativa o Teatro na Idade Média, as farsas, representadas na rua, para toda a família. Mas esquecem exatamente o que foi abordado acima sobre a questão da criança na sociedade de então, e esquecem também que na Idade Média os feudos eram minúsculas povoações com um número incomparável ao nosso mundo hoje, formado por crianças e jovens até 20 anos, que então morriam ou de peste ou nas cruzadas. Claro que era, assim possível, um teatro para toda a família, sem distinção de infantil ou adulto.
Outra justificativa levantada em prol do famoso “teatro é teatro e pronto” é o teatro de Mamulengo. Mais uma vez dizem: “ Veja o teatro de mamulengo, é representado para a família inteira” – uma afirmativa sem nenhuma verdade.
O Mamulengo é um espetáculo que dura em torno de seis horas, representado no interior de Pernambuco, onde o analfabetismo aproxima adultos e crianças, onde o universo em que vivem, restrito, também os aproxima, a convivência estreita diminui os “interditos” à criança. E na verdade, em seu livro “O mundo mágico de João Redondo” Altimar Pimentel diz: “ Primeiro as crianças iam dormir, depois as mulheres se retiravam e quando já ia alta a noite e a cachaça o mamulengo então se tornava pornográfico” Portanto o conceito de infância não suficientemente debatido, pensado e refletido, coloca em questão inúmeras assertivas sobre o teatro infantil, que se tornaram verdades.
Esta questão “o que importa é o bom teatro” é evidente e não diz nada, na verdade. Do teatro para criança tem que se exigir qualidade, da mesma forma que do teatro para adultos, mas isto não os torna “a mesma coisa “
Aqui sempre vale repetir a já exaustivamente citada frase de Stanilawsky “O teatro para crianças tem que ser igual ao do adulto, só que melhor” ou a frase de Pirandello “Fazer teatro para crianças é igual a fazer teatro para adultos, só que mais difícil”Seguindo a história, a idéia de infância se concretizou quando foi inventada a imprensa. Assim a nova idade adulta passou a excluir as crianças e estas, expulsas do mundo adulto, passaram a habitar um outro mundo, o mundo da infância. Ao se tornar letrado, o mundo adulto, a educação passou a ser instrumento necessário e assim surge a civilização européia que inventa a escola, provocando uma revolução profunda no próprio sentimento de família. Agora os pais confiavam à escola o papel de educar seus filhos.
A partir daí surge um novo amálgama, difícil, até hoje, se individualizar. O teatro e o teatro na escola.
O teatro, como produção artística, visto pela ótica da obra de arte não tem que fazer parte do processo educativo institucional da instiuição escola. Deve fazer parte da vida do indivíduo. E como obra de arte não tem função “ensinante”, nem “moralizante”, nem “didática”. Diz-se do teatro pedagógico no sentido amplo de fazer o indivíduo se conhecer, se perceber, perceber o outro e o mundo e não aprender que se deve escovar os dentes três vezes ao dia.
E aqueles que defendem isto, levianamente citam Brecht e o teatro didático de Brecht. Em algum momento estas pessoas leram O Pequeno Organón de Brecht e viram que ele diz textualmente que o teatro não foi feito para ensinar? O didático e o distanciamento Brechtiniano têm também a função do homem conhecer a si mesmo, ao próprio homem, ao outro e à sociedade e poder ver, perceber, pensar, raciocinar, deduzir, entender, compreender, questionar, através deste distanciamento. que impede que a emoção tolde totalmente o seu pensar e repensar o mundo. O homem está aprendendo sobre o homem e sobre o mundo – pensando criticamente sobre todas as questões pertinentes e jamais ensinando como as pessoas devem se comportar ou dando lições de moral, mensagens edificantes e tal.
Mas a escola com seu super-didatismo não consegue permitir a liberdade da arte e a função libertária da arte. Não consegue entender que uma obra de arte é completa por si mesma, que não há necessidade de se fazer “um aproveitamento” – este é feito pelo próprio processo artístico. Se não faz efeito assim, é porque não é uma obra de arte. E “fazer o aproveitamento” do espetáculo visto é limitar e reduzir a obra de arte e sim uma aula e esta não é definitivamente a função do teatro, nem de nenhuma obra de arte.
E a escola continua a escolher os espetáculos a serem indicados a seus alunos pelo critério dos que atendem ao conteúdo programático da escola, que ajudam a ensinar algo, ou que é transmissor de bons costumes, bons hábitos e boa moral.
Ou então servem de maneira complementar às comemorações do dia do Índio, do dia do Soldado, do mês do folclore e assim por diante. Esta também não é, definitivamente, a função do teatro.
As origens européias de nossa literatura infantil e do nosso teatro, ambos introduzidos no Brasil através de autores europeus aqui traduzidos e publicados, trouxe esta função colonialista do teatro feito para ensinar a criança.
O teatro deve estar na escola, como a música, a dança, como Obra de Arte e não com a função de ensinar. Cabe a escola estimular a criança a experenciar a Arte – esta questão não mais se discute – fundamental na formação integral do ser humano e enquanto ARTE.
O teatro pode estar na escola, íntegro, de várias, formas, mas esta é uma questão par um outro artigo.
Atualmente, o conceito adulto-infância está bastante confuso, sem fronteiras. Nota-se que brincadeiras de rua, jogos, brinquedos manuais, já não são mais alvo de interesse de nossas crianças ou então não estão disponíveis às mesmas.
O vestuário infantil confunde-se com o do adulto: crianças vestem roupas sensuais, salto alto, usam maquiagem e acessórios exagerados; enquanto adultos querem prolongar a adolescência, vestindo-se de forma apropriada a este período.
A partir dessas considerações, parece que a concepção de infância dos dias de hoje é semelhante à da Idade Média, quando a criança era concebida como um adulto em miniatura.
Nesse sentido, mais particularmente, a noção de individualidade é que faz com que a criança seja entendida, como um "sujeito de direitos", um ser uno, indivisível, curioso, dotado das melhores potencialidades da espécie e que deve ser respeitado, pois se encontra num momento de formação da personalidade e valores .
E nada melhor que a Arte, e aqui, o teatro pra que ele discuta, questione, pense e repense e decida, por si mesmo, sobre seus próprios valores.
Outras palavras engessam o teatro infantil, mas aqui a infância e a escola foram as questões primeiras. E sob esta perspectiva Maria Helena Kühner, de forma brilhante, questinonou todo este universo com um simples título do livro qeu coordenou e que reúne artigos sobre teatro infantil de autores diversos - "O teatro dito infantil".
______________________________________________________________
(1) FONTINHA, Rodrigo. Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, revisto pelo Dr. Joaquim Ferreira. Editorial Domingos Barreira, Porto, Portugal.
(2) CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológio Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
Editora Nova Fronteira. RJ. Brasil. 1982
Bibliografia:
Revista Sul Americana de Filosofia e Educação, artigos diversos
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981
BRAYNER, Flávio. Da Criança-cidadã ao Fim da Infância. In: Educação e Sociedade,
KOHAN, Walter Omar. Filosofia para Crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. Coleção (O que você precisa saber sobre).
POSTMAN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999
RUSSEFF, Ivan. A Infância no Brasil pelos Olhos de Monteiro Lobato. In: FREITAS, M. C. (org.). História Social da Infância no Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1999.


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terça-feira, setembro 12, 2006


 

TEXTOS E REFLEXÕES


A RELAÇÃO ESCOLA E TEATRO INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


por Rovilson José da Silva



Pensar em teatro infantil, antes de tudo, é pensar em Arte e, como tal, é ter claro que a formação do indivíduo é mediada pelas relações artístico-culturais existentes na sociedade.
Ainda nos leva a pensar em todos os produtos culturais existentes: livros, música, pintura, dança, teatro entre outras manifestações culturais.
Pensar na escola, nesse contexto, é ter claro que, entre outros aspectos, ela muitas vezes transforma-se num dos únicos meios de contato da criança com a Arte, principalmente num país com tanta carência de espaços culturais destinados à criança. Isso não quer dizer que o modo como a escola conduz esse processo seja plenamente satisfatório. Ainda não o é, pois a escola reflete as relações que a sociedade, como um todo, mantém com a cultura.
Se o professor, como qualquer cidadão, em sua comunidade não teve contato com os produtos culturais, não teve acesso ao livro, ao teatro ou à música, é muito provável que ele também terá mais dificuldade para entender e permitir que as manifestações artísticas aflorem no espaço escolar. É provável que na escola haja maior dificuldade para compreender a dimensão do estético em qualquer que seja o veículo: texto, imagem, teatro etc. Enfim, se os instrumentos de cultura estão ausentes para a população, estarão também para a escola.
A escola, por sua própria trajetória, tende a escolarizar aquilo que chega ao seu domínio. Inclusive o teatro. Se escola tem pouco contato com os produtos culturais, há grande probabilidade de que relação escola-arte transforme o artístico num arremedo excessivamente didático, cuja intenção predominante seja a de inculcar valores moralizantes nos pequenos em detrimento do estético.
Por outro lado não se pode perder a noção de que ainda assim, a escola é um dos principais meios de contato do público infantil com o teatro. Basta ver a pequena quantidade de teatros e montagens infantis nas cidades de pequeno e médio porte.
Não é absurdo pensar que nas cidades pequenas (a maioria do Brasil) o contato da criança com o “teatro” se dá basicamente pela escola ou pela igreja. É claro que em ambas as instituições o “espetáculo” é marcado mais pelo viés pedagógico que pelo estético propriamente dito. Mas ainda assim, precariamente, aguça-se a sensibilidade da criança, No entanto, essas apresentações são sazonais, não têm continuidade e estão relacionadas a datas comemorativas da escola ou da igreja. A gente poderia pensar: melhor isso que nada! Acredito que já está na hora de só as “pecinhas” bastarem. Arte para criança é coisa séria.
A criança merece uma produção artístico-cultural que vá além do improviso, além do arremedo dos programas de auditório da TV. É claro que a função do teatro na escola, enquanto recurso pedagógico, não é a de montar espetáculo.
O teatro na escola, de acordo com os PCNS de Arte (2001)*, tem o intuito de que o aluno desenvolva um maior domínio do corpo, tornando-o expressivo, um melhor desempenho na verbalização, uma melhor capacidade para responder às situações emergentes e uma maior capacidade de organização de domínio de tempo.
O teatro no ensino fundamental estimula o crescimento integral da criança, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. No plano individual haveria “o desenvolvimento das capacidades expressivas e artísticas da criança”. Já o plano coletivo promoveria “exercício das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão de como agir com os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia como resultado do poder agir e pensar sem coerção” (2001, p.84).
Se por um lado podemos pensar no teatro como manifestação educativa e cultural produzida no próprio seio escolar. Por outro lado, as produções oferecidas por grupos amadores e até profissionais, muitas vezes, tal como a escola, pecam pelo didatismo exagerado, pela ausência de pesquisa do processo cognitivo da criança, o que gera, também, uma distorção artística.
Assim, não é difícil encontrarmos espetáculos cuja concepção de criança centra-se apenas em criar um palco colorido, com muitas brincadeiras ou intervenção do público, ou com um comportamento típico dos programas de auditório, como se a criança não fosse capaz de assistir a uma apresentação sem “participar” indicando onde está a personagem, entre outros recursos etc. As interrupções constantes na peça, as elucubrações inatingíveis, em muitos casos, ao desenvolvimento cognitivo do público para qual apresentação é destinada, dilui o conflito da trama, dispersa a criança do foco principal do enredo, da força dramática (que deve ser um dos aspectos fundamentais do teatro). Será que a criança não é capaz de assistir a um espetáculo sem que haja interrupção?
Também o texto não pode ferir a inteligência da criança, para elas o texto deve ser qualidade e não precisa tratar a criança como se ela fosse um “serzinho”, “pequenininho” que não consegue entender tudo direitinho, cheio de “inho”. A criança é pequena apenas no tamanho físico do corpo e isso não quer dizer que não tenha inteligência e sensibilidade.
Outro aspecto é anunciar a entrega de prêmios, sorteios no término do espetáculo tornaram-se quase um consenso de uns tempos para cá. Em conseqüência disso, não é difícil ver crianças frustradas, chorando porque não foi sorteada. A arte dramática não basta por si só? A criança precisa entender que o espetáculo deve bastar por si só. O que ele condensa, o que ele provoca no espectador não é imediatamente visível, “concreto”. A criança precisa de seu espaço para reelaborar o que viu, as emoções que foram estimuladas, de modo que a diversão se transforme em esclarecimento a respeito de si mesma, que favoreça o seu desenvolvimento psico-sócio-cultural.
Na escola, como na sociedade em geral, a leitura está circunscrita, quase sempre, à seguinte gradação:
Sempre: lê-se o texto em prosa.
Às vezes: lê-se o texto em versos.
E raramente: lê-se o texto dramático.
Basta procurar nos catálogos das grandes editoras para o público infanto-juvenil e verificar a quase inexistência de obras assim dirigidas às crianças. O mesmo acontece com o acervo das bibliotecas destinadas a esse público, ou seja, não é muito comum encontrar textos de teatro por lá. Portanto, é preciso que haja uma conjuntura de instrumentos culturais que formem um circulo cultural de modo a oferecer mais e mais acesso das crianças ao mundo da Arte como um todo.
Enfim, à criança deverão se oferecidas várias possibilidades de produtos culturais, de espaços culturais para que ela amadureça sua visão, para que ela contraponha o que conhece com o que desconhece. Para que ela, principalmente, tenha despertada a sua sensibilidade para perceber-se, para perceber o outro, enfim, para perceber o mundo que a rodeia.
*Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. Volume 6./Ministério da Educação.3.ed. Brasília:A Secretaria, 2001.
Rovilson José da Silva
Coordenador do projeto de leitura do Município de Londrina
Doutorando em educação – UNESP/Marília
Este texto foi publicado originalmente no site do CBTIJ Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude


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Textos e Reflexões


por Rovilson José da Silva



A RELAÇÃO ESCOLA E TEATRO INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Pensar em teatro infantil, antes de tudo, é pensar em Arte e, como tal, é ter claro que a formação do indivíduo é mediada pelas relações artístico-culturais existentes na sociedade.
Ainda nos leva a pensar em todos os produtos culturais existentes: livros, música, pintura, dança, teatro entre outras manifestações culturais.
Pensar na escola, nesse contexto, é ter claro que, entre outros aspectos, ela muitas vezes transforma-se num dos únicos meios de contato da criança com a Arte, principalmente num país com tanta carência de espaços culturais destinados à criança. Isso não quer dizer que o modo como a escola conduz esse processo seja plenamente satisfatório. Ainda não o é, pois a escola reflete as relações que a sociedade, como um todo, mantém com a cultura.
Se o professor, como qualquer cidadão, em sua comunidade não teve contato com os produtos culturais, não teve acesso ao livro, ao teatro ou à música, é muito provável que ele também terá mais dificuldade para entender e permitir que as manifestações artísticas aflorem no espaço escolar. É provável que na escola haja maior dificuldade para compreender a dimensão do estético em qualquer que seja o veículo: texto, imagem, teatro etc. Enfim, se os instrumentos de cultura estão ausentes para a população, estarão também para a escola.
A escola, por sua própria trajetória, tende a escolarizar aquilo que chega ao seu domínio. Inclusive o teatro. Se escola tem pouco contato com os produtos culturais, há grande probabilidade de que relação escola-arte transforme o artístico num arremedo excessivamente didático, cuja intenção predominante seja a de inculcar valores moralizantes nos pequenos em detrimento do estético.
Por outro lado não se pode perder a noção de que ainda assim, a escola é um dos principais meios de contato do público infantil com o teatro. Basta ver a pequena quantidade de teatros e montagens infantis nas cidades de pequeno e médio porte.
Não é absurdo pensar que nas cidades pequenas (a maioria do Brasil) o contato da criança com o “teatro” se dá basicamente pela escola ou pela igreja. É claro que em ambas as instituições o “espetáculo” é marcado mais pelo viés pedagógico que pelo estético propriamente dito. Mas ainda assim, precariamente, aguça-se a sensibilidade da criança, No entanto, essas apresentações são sazonais, não têm continuidade e estão relacionadas a datas comemorativas da escola ou da igreja. A gente poderia pensar: melhor isso que nada! Acredito que já está na hora de só as “pecinhas” bastarem. Arte para criança é coisa séria.
A criança merece uma produção artístico-cultural que vá além do improviso, além do arremedo dos programas de auditório da TV. É claro que a função do teatro na escola, enquanto recurso pedagógico, não é a de montar espetáculo.
O teatro na escola, de acordo com os PCNS de Arte (2001)*, tem o intuito de que o aluno desenvolva um maior domínio do corpo, tornando-o expressivo, um melhor desempenho na verbalização, uma melhor capacidade para responder às situações emergentes e uma maior capacidade de organização de domínio de tempo.
O teatro no ensino fundamental estimula o crescimento integral da criança, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. No plano individual haveria “o desenvolvimento das capacidades expressivas e artísticas da criança”. Já o plano coletivo promoveria “exercício das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão de como agir com os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia como resultado do poder agir e pensar sem coerção” (2001, p.84).
Se por um lado podemos pensar no teatro como manifestação educativa e cultural produzida no próprio seio escolar. Por outro lado, as produções oferecidas por grupos amadores e até profissionais, muitas vezes, tal como a escola, pecam pelo didatismo exagerado, pela ausência de pesquisa do processo cognitivo da criança, o que gera, também, uma distorção artística.
Assim, não é difícil encontrarmos espetáculos cuja concepção de criança centra-se apenas em criar um palco colorido, com muitas brincadeiras ou intervenção do público, ou com um comportamento típico dos programas de auditório, como se a criança não fosse capaz de assistir a uma apresentação sem “participar” indicando onde está a personagem, entre outros recursos etc. As interrupções constantes na peça, as elucubrações inatingíveis, em muitos casos, ao desenvolvimento cognitivo do público para qual apresentação é destinada, dilui o conflito da trama, dispersa a criança do foco principal do enredo, da força dramática (que deve ser um dos aspectos fundamentais do teatro). Será que a criança não é capaz de assistir a um espetáculo sem que haja interrupção?
Também o texto não pode ferir a inteligência da criança, para elas o texto deve ser qualidade e não precisa tratar a criança como se ela fosse um “serzinho”, “pequenininho” que não consegue entender tudo direitinho, cheio de “inho”. A criança é pequena apenas no tamanho físico do corpo e isso não quer dizer que não tenha inteligência e sensibilidade.
Outro aspecto é anunciar a entrega de prêmios, sorteios no término do espetáculo tornaram-se quase um consenso de uns tempos para cá. Em conseqüência disso, não é difícil ver crianças frustradas, chorando porque não foi sorteada. A arte dramática não basta por si só? A criança precisa entender que o espetáculo deve bastar por si só. O que ele condensa, o que ele provoca no espectador não é imediatamente visível, “concreto”. A criança precisa de seu espaço para reelaborar o que viu, as emoções que foram estimuladas, de modo que a diversão se transforme em esclarecimento a respeito de si mesma, que favoreça o seu desenvolvimento psico-sócio-cultural.
Na escola, como na sociedade em geral, a leitura está circunscrita, quase sempre, à seguinte gradação:
Sempre: lê-se o texto em prosa.
Às vezes: lê-se o texto em versos.
E raramente: lê-se o texto dramático.
Basta procurar nos catálogos das grandes editoras para o público infanto-juvenil e verificar a quase inexistência de obras assim dirigidas às crianças. O mesmo acontece com o acervo das bibliotecas destinadas a esse público, ou seja, não é muito comum encontrar textos de teatro por lá. Portanto, é preciso que haja uma conjuntura de instrumentos culturais que formem um circulo cultural de modo a oferecer mais e mais acesso das crianças ao mundo da Arte como um todo.
Enfim, à criança deverão se oferecidas várias possibilidades de produtos culturais, de espaços culturais para que ela amadureça sua visão, para que ela contraponha o que conhece com o que desconhece. Para que ela, principalmente, tenha despertada a sua sensibilidade para perceber-se, para perceber o outro, enfim, para perceber o mundo que a rodeia.
*Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. Volume 6./Ministério da Educação.3.ed. Brasília:A Secretaria, 2001.
Rovilson José da Silva
Coordenador do projeto de leitura do Município de Londrina
Doutorando em educação – UNESP/Marília
Este texto foi publicado originalmente no site do CBTIJ Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude


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domingo, setembro 03, 2006


 

A DESCONSTRUÇÃO DO MEDO


A desconstrução do medo de bruxa na literatura infantil contemporânea


porCRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA



"Muitos medos a gente tem
e outros a gente não tem.
Os medos são como
olhos de gato
brilhando no escuro."
(Roseana Murray)
Em minhas reminiscências de infância, a imagem da bruxa era sempre apavorante. Sua caracterização física auxiliava sobremaneira na construção do medo diante dessa figura feminina que, muitas vezes, era usada até por pais como elemento ameaçador a fim de disciplinar as crianças.
Cresci ouvindo a descrição da bruxa da história de João e Maria, senhora de feições grotescas afeita à antropofagia. Esse ser aterrorizante que comia criancinhas merecia mesmo tão duro castigo aplicado por João e Maria. Isso sem falar da madrasta da Branca de Neve que personifica essa maldade de bruxa a fim de castigar a enteada por sua beleza. Associado a essas imagens, surge o adjetivo bruxa, como caracterizador de mulher feia e megera.

Esta visão da bruxa passou por transformações e, atualmente, percebe-se a criação de bruxas que agem eventualmente com bondade ou, por vezes, portam-se como fadas. Foi diante dessas inquietações que surgiu a temática deste ensaio, a fim de investigar como se situa a imagem da bruxa nos dias de hoje.

Para tanto, partirei inicialmente de uma abordagem psicológica do que representa o medo de bruxa. Desejo e medo são elementos fundamentais para a evolução dos seres humanos, uma vez que temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo. Na evolução humana, esses temores devem ser enfrentados, sob a pena de surgiram patologias. O medo de bruxa pode ser relacionado a dois degraus da escada do desejo e do medo proposta pelo psicólogo Jean-Yves Leloup: medo da separação e medo de ser rejeitado pela sociedade.

As crianças têm medo de se separar da mãe (ou pessoa que represente este papel) e perder a garantia de segurança e proteção. Essa figura materna é vista com ternura e cercada de atributos positivos. Entretanto algumas vezes, a criança é contrariada em suas vontades exatamente por essa pessoa. Instaura-se, assim, o dilema infantil: como sentir raiva de alguém tão amado sem ferir-lhe os sentimentos e perdê-la? Manifesta-se a necessidade de dividir a figura materna em duas partes que corresponderiam a fada, vertente positiva, e a bruxa, lado negativo. Com essa cisão, a bruxa concentra em si a maldade e, por isso, pode ser odiada e castigada numa atitude de enfrentamento por parte da criança.

A bruxa, para vivificar esses desejos de vingança infantil, tem de corresponder a um ser detestável. Daí nasce a imagem de uma ardilosa senhora, de certa idade, que se veste em tons escuros e sombrios, sendo geralmente descrita como fisicamente fora do padrão de beleza social. A maldade precisa ser sua característica mais marcante a fim de justificar tamanho ódio a ela direcionado pelo personagem principal das histórias. Desta maneira, a dissociação de bem (fada-mãe-protetora) e mal (bruxa-mãe/madrasta-malvada) facilita a superação do medo da separação materna.

O desejo de corresponder a uma imagem de "homem de bem" ou "mulher de bem" gera a preocupação com o chamado imago social. Desse desejo de corresponder a uma imagem social de “bem”, surge um medo de ser rejeitado pelo grupo e de ser diferente. A sombra, na conceituação proposta por Jung, contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis do homem. Para ultrapassar a limitação, o ego entra em conflito com esta sombra a fim de enfrentar a não aceitação de características pessoais socialmente mal vistas.

A necessidade de enfrentar a própria sombra é tematizada pela literatura infantil de diversas maneiras, dentre elas através das bruxas. Elas simbolizam a força perversa do poder. Por muito tempo, foram personificadas através de um estereótipo grotesco, a fim de impactar e causar horror. O herói precisa reconhecer a existência da sombra e a batalha travada para vencer o poder da bruxa representa o triunfo do ego sobre essas tendências negativistas.

Segundo a psicanálise, o maniqueísmo que divide as personagens facilita a compreensão de valores básicos da conduta humana e do difícil convívio social. Se essa dicotomia for transmitida através de uma linguagem simbólica durante a infância, não prejudica a formação de sua consciência ética. A criança identifica-se com os heróis do mundo maravilhoso, sendo assim levada a resolver, inconscientemente, sua situação pessoal. Dessa forma, consegue enfrentar e superar o medo presente à sua volta e pode, gradativamente, alcançar o equilíbrio na fase adulta.

A literatura infantil contemporânea convive com um sério problema: de que maneira apresentar ao público infantil esse lado pavoroso da “sombra do homem” tão presente na vida moderna? Será que essa polarização de bem e mal é o melhor caminho ou seria mais adequado mostrar a relatividade das coisas e as ambigüidades das pessoas?

A ética maniqueísta que separa nitidamente bem de mal, certo de errado, vem perdendo espaço. Em seu lugar, está presente uma ética relativista em que o mal aparente revela-se em bem ou resulta em algo certo. Essas transformações podem ser bem observadas diante da mudança no emprego de outra categoria de personagem que é a transfiguração de uma realidade humana.

A visão maniqueísta da bruxa apresenta-a como uma personagem-tipo ou plana que é estereotipada. Essa personagem corresponde a um procedimento padrão de maldade que nunca muda suas ações ou reações, sendo sempre má. Em conseqüência de uma nova visão de mundo, os escritores passaram a privilegiar personagens que sejam condizentes com essa relativização de conceitos. Essa dimensão ambígua do homem ganha forma através da personagem-individualidade, típica da ficção contemporânea. Esse tipo de personagem não pode ser rotulado como sendo bom ou mau, ele passa a “estar” bom ou mau diante diferenciadas situações.

Apesar das críticas recebidas pela ética relativista, ela mostra-se cada vez mais presente nas histórias infantis. Aqui a bruxa torna-se um elemento bastante representativo para uma observação da desconstrução da imagem de maldade da bruxa, inclusive com um trabalho de identificação do leitor com ela. Como exemplos de bruxas nessa concepção de personagem-individualidade, observei algumas produções infantis brasileiras. Encontrei manuais para entender melhor as bruxas com vestimente, acessórios, formas de agir etc. Bartolomeu Campos de Queirós mostra as sutilezas do lado bruxa da vida em Onde tem bruxa tem fada. Eva Furnari apresenta uma bruxa atrapalhada, bem próxima à realidade infantil, bem como a personagem Bruxa Onilda em suas viagens.

Como não poderia abordar várias obras, selecionai duas como representativas dessa nova bruxa: a peça A Bruxinha que era boa, de Maria Clara Machado e Uxa - ora fada ora bruxa de Sylvia Orthof.

Logo pelo título Maria Clara rompe com esse paradigma de maldade relacionada às bruxas. Na verdade, a bruxa/feiticeira era um elemento importante em diversas culturas, como por exemplo a céltica. Com a difusão da fé católica, ela adquiriu essa carga pejorativa. Diante da figura próxima ao demônio, os fiéis temiam as bruxas e, principalmente durante a Santa Inquisição, queimavam-nas em praça pública.

Na peça, há seis bruxas, sendo uma a chefe das demais que são aprendizes prestes a realizar seus exames finais diante do temido Bruxo Belzebu, sua Ruindade Suprema. Subliminarmente, questiona-se o poder da dominação do Grande Bruxo e o medo que as outras sentem de contrariá-lo de alguma maneira.

A Bruxinha Ângela, cujo nome sugere referência a anjo, é diferente das outras em seu comportamento e até fisicamente (típico Patinho Feio). Ela tem movimentos elegantes, risos ao invés de estridentes gargalhadas, rostinho angelical e cabelos estranhamente louros. Ela não apresenta o estereótipo da bruxa e não é de sua natureza fazer maldades.

Em certa parte da história, o Grande Bruxo convoca as bruxinhas aprendizes para fazer maldades pois só se vêem bruxas falsificadas, segundo ele.O primeiro alvo é Pedrinho, jovem lenhador, que acaba achando aquela Bruxinha diferente e até questiona se ela não é uma fada disfarçada. Com o auxílio dele, Ângela consegue não ficar presa numa torre que seria o castigo por não fazer as maldades típicas de uma bruxa.

Já Sylvia Orthof traz o humor para sua história ao contar as desventuras da baixinha e gordinha Uxa que, sendo bruxa, resolve dar uma de fada algumas vezes. Para desempenhar este papel, ela tem de mudar o visual e coloca peruca loura e chapéu de fada. Como para uma bruxa é difícil fazer caridade; ela, na tentativa de ser boa, acaba criando diversas confusões.

Depois de seus equívocos como fada, a varinha vira vassoura e ela diz que se cansou de ser tão boa... e loura. Ela descobre que pratica mesmo o que chama de “maldade beleza pura” e ajuda diversas pessoas. Num real afastamento da imagem de medo em relação à bruxa, a autora apresenta Uxa através de um narrador que se diz amigo dela. Para finalizar e atualizar esse referencial da bruxa, ela se apaixona perdidamente por um moderno computador.

Encerro, portanto, este ensaio com a certeza de que a imagem da bruxa, atualmente, não é mais apavorante e que inspira medo. Pelo contrário, multiplicam-se os sítios na grande rede de computadores que registram como fazer bruxarias e afirmam categoricamente as boas intenções das bruxas.

A literatura infantil está desempenhando este papel de mostrar a relativização dos conceitos de bem e mal em toda a sua ambigüidade humana. Ficam aqui como fecho duas frases; uma do narrador da história de Uxa, complementada pelas palavras finais de Iêda de Oliveira em Bruxa e Fada Menina Encantada:

" (...) sei não, eu acho Uxa muito parecida com muita gente!"
"Quando zanga, vira bruxa / Quando ama, vira fada."

Referências Bibliográficas
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dictionanaire des Symboles. Paris, Seghers et Jupiter, 1969.
LELOUP, Jean-Yves. Caminhos da realização dos medos do eu ao mergulho no Ser. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil - Teoria - Análise - Didática. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1991.
MACHADO, Maria Clara. A Bruxinha que era boa. In: Teatro I. 12ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1987.
ORTHOF, Sylvia. Uxa - ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
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Para citar este artigo copie as linhas abaixo:
CRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA. "A DESCONSTRUÇÃO DO MEDO DE BRUXA NA LITERATURA INFANTIL CONTEMPORÂNEA" [online]
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# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 6:48 PM 0 Comentários
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