Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



domingo, novembro 26, 2006


 

TEATRO INFANTIL – TEATRO POPULAR



por maria helena kühner



PARTE I
A relação que se estabelece entre o infantil e o popular ? Os espetáculos recorrem ao folclore, a contos populares, e inclusive a adaptações de clássicos que partiam desta mesma base. Levando-me a perguntar: que relação existiria entre o infantil e o popular?
A pergunta vai longe. Desde as constatações primeiras e mais superficiais sobre sua posição, situação e papel na sociedade em que estamos ao sentido e significado mais profundos de suas representações. Ou seja, da marginalização comum a ambos dentro de uma sociedade hierárquica e autoritária, fundada em relações verticais que colocam em plano inferior, em termos de expressão artística ou cultural, os produtos a que dão o rótulo de "infantil" ou de "popular".
De uma sociedade em que o fanatismo do ganho ou do lucro faz do negócio (nec-otium) sua lei – e nessa negação do ócio, da possibilidade contemplativa ou recreativa (recriativa), instala o fanatismo do trabalho, fazendo desse trabalho um dever – pelo qual se prolonga e se mantém a alienação daquele que muitas vezes não trabalha para viver, vive para trabalhar, e para o qual o ser "trabalhador", em termos adjetivos, tem conotação elogiada e premiada, com a qual se oculta sua condição explorada e alienada de ser, substantivamente, um trabalhador.
De uma sociedade em que são, assim, desqualificados ou desvalorizados o jogo, a brincadeira, as representações e as manifestações espontâneas que, ao lado do saber adquirido, expressam um exercício de pensamento com total liberdade de movimento e uma ingenuidade que é a abertura mesma para o imaginário; em que a "seriedade" daquele saber estabelecido e institucionalizado é posta em confronto, nos planos ontológico e ético, com a suposta "superficialidade" dessas representações; em que a "realidade" em que se alicerça a primeira crítica, implícita ou abertamente, a imagem "ilusória" que caracterizaria as demais. Mas é com essas e outras confrontações que o adulto desqualifica o infantil, a "cultura" de elite desqualifica a expressão popular, e uma sociedade de relações verticais fabrica uma ideologia que tenta justificar a necessidade e a pretensa "verdade" das hierarquizações que estabelece.
No entanto, as últimas décadas vêm mostrando acentuada tendência para uma crescente apropriação daquelas expressões e manifestações por aqueles que hoje manipulam a chamada "indústria cultural". No caso da criança, como forma de atuar sobre ela e formá-la à imagem e semelhança de modelos desejados – modelos que, como tem sido seguidamente denunciado, sobretudo no que se refere à mídia, buscam legitimar toda a escala de "valores" da sociedade estabelecida capazes de garantir a reprodução social. No caso do "lazer" adulto repetindo as relações da sociedade que o gera: as competições (esportivas, automobilísticas, festivais de cinema e música etc.), a valorização em função do mercado (que hoje se pavoneia como "marketing cultural"), os mecanismos de projeção (como no futebol e carnaval) aliviando tensões e inquietações.
Não é dessas manifestações produzidas para a criança e para o povo que falamos. Falamos em a-propria-ação, termo que tem à raiz a noção de serem aquelas expressões próprias ou características do infantil e do popular. O que as caracteriza, ou seja, o que trazem como caráter ou marca sua, e que é sentido como um valor a ser apropriado e transformado em mercadoria de consumo, ou tornado objeto de manipulação e controle? Ou mais, o que poderiam ter de potencialmente ameaçador para o status quo para gerar a necessidade de sua manipulação e controle? Ou seja, generalizando.

O que é folguedo ou brincadeira popular, o que é o jogo?
O que denotam, do brinquedo infantil ao folguedo popular, dos jogos da criança, ou atleta, ao jogo teatral do ator no palco? O que têm em comum essas diferentes expressões? Qual o seu sentido e significado mais profundos? Qual o seu papel para a criança ou para o povo que os gera?
A formulação mesma das perguntas já evidencia a diferença do enfoque: perguntar o que são para a criança ou para o povo é buscar desvendar os recursos geradores dessas expressões, ou seja, aqueles que informam quanto a suas formas de garantir uma sobrevivência material ou usar produtivamente a própria experiência; quanto às formas de associação ou relação com os outros; quanto às formas de expressar ou representar no plano simbólico suas relações com o mundo em que estão e os seres humanos que nele vivem. Recursos que, conscientizados ou sentidos como tais, têm um potencial transformador cada vez mais evidente: "A imaginação no poder", escreveram os estudantes nos muros da França em maio de 68 – o que é mais que um simples protesto contra o intelectualismo dessa repressiva "civilização da ciência e da técnica", que fez do pensamento racional a forma única de abordagem da realidade e uma negação das demais formas possíveis – imaginação, sensação, intuição; é também uma contestação a tudo que surgiu historicamente com ele, inclusive a pressão do "pensamento único" e dos fundamentalismos cujas conseqüências estamos vendo na prática. E a experiência das revoluções político-sociais do século passado, o surgimento de "revoluções culturais" e os questionamentos das novas "ciências do homem" têm demonstrado a insuficiência de uma transformação externa das estruturas sem uma interiorização geradora de novos modos de pensar e novos modos de agir capazes de criar uma sociedade mais aberta e humana, ou seja, uma sociedade para o ser humano.
Pois uma das primeiras e mais evidentes características comuns das "brincadeiras" ou jogos populares e infantis é o fato de serem a fabulação de uma relação. Como vimos, por exemplo, no 5º Festival: em O Boi Viramundo, fabulação das relações sociais – o patrão, o padre, o doutor, apresentados de forma crítico-cômica, nelas afirmando o papel do "brincante"; ou em outro espetáculo, A Porta Azul, a da mulher jovem enfrentando com o Barba Azul os obstáculos e desafios a sua individualização e crescimento; que em O Casamento da Princesa Juliette incluíram a vivência da diferença, a abertura ao mundo-floresta e a negação da tradição no que tem de castradora (a educação dita "feminina", a etiqueta...); ou no dono do Cirquinho e seus palhaços e destes entre si, reproduzindo criticamente as formas dominantes atuais; ou em João e Maria atingindo em plano profundo a relação pais / filhos, e sua possível carga de medos, fome, abandono e morte. Os exemplos, multiplicáveis, mostrariam sempre uma relação, experimentada ou revivida, o re-trato de uma relação.
Daí a posição ambivalente da criança, ou do brincante, no jogo ou brinquedo, que ora suscitada sua atividade – e aí desprende toda a potência da fabulação, fazendo-a assumir papéis, inventar estratégias para as situações criadas, enfrentar obstáculos, resolver problemas, correndo todos os "riscos", tendo que "ser Arisco, um Corisco" – ora se mantém em passividade, brincando de ser ela própria o brinquedo, o joguete do jogo – como se sentem muitas vezes quando os acontecimentos estão acima e além de seu controle e a "sorte" ou o "azar" é que decidem ,


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 4:25 AM 31 Comentários



quinta-feira, novembro 16, 2006


 

A DRAMATURGIA AUSENTE


( E QUE FALTA ELA FAZ!)


por Maria Helena Kühner



Te-atrium = lugar de ver. Mas, como expressar / fazer ver nosso complexo mundo contemporâneo? A pergunta parece permear tudo, remetendo à uma questão que aí se mostrou central: a falta, ou a busca de uma dramaturgia.

A falta de uma dramaturgia, no caso daqueles que, na ausência de respostas quanto ao que dizer contentam-se com:

- dirigir seus esforços no sentido de como dizer (como se essa dissociação fosse possível!), concentrando-se no apuro e variação de recursos técnicos de todo tipo, de efeitos visuais, sonoros, uso de formas animadas, figurinos, adereços etc.etc. Resultam daí espetáculos em que se vêem atores com toda uma gama de recursos lúdicos/teatrais, em termos de corpo, voz, movimento, gestual, mímica, capacidade de imitar, de caricaturar, de tornar presente um personagem com uma bem-humorada visão crítica, de introduzir uma situação curiosa e interessante, de jogar com o improviso etc.etc., mas cujo trabalho se esgota ou se dilui progressivamente por não conseguir se equilibrar no fio de um roteiro pobre, em que a estrutura cênica é primária, esquemática e repetitiva, em que a situação dramática não evolui, em que a fabulação (se, ou quando existe) é débil e insuficiente, os conflitos inexistem, a ação dramática, pouco ou nada desenvolvida, é substituída pela ênfase em diálogos tolos, cheios de gags, piadas, brincadeiras supostamente engraçadas, falas em que o lugar-comum é a tônica e os clichês se repetem, assim como se repete na cena o uso de recursos fáceis, macaquices e gracinhas para tentar prender o público – que, muitas vezes, responde com dispersão e desinteresse crescentes.

- Ou um espetáculo em que se tenta, sem conseguir, compensar a pobreza de conteúdo e a falta de uma ação dramática com uma movimentação cênica – que não é em absoluto a mesma coisa – e da qual ficam igualmente excluídos o jogo de relações, contradições, revelações, peripécias e todos os demais elementos que compõem a seqüência de acontecimentos cênicos produzidos em função da ação de personagens. Ação que, obviamente, também se dilui ou se esvazia se esses personagens são estereotipados, sem consistência, indefinidos, se a mudança de cenas tem uma pontuação deficiente, equívoca ou gratuita, sem nada que possa provocar a imaginação, enriquecer a percepção e a sensibilidade do espectador infantil ou juvenil, ou estimular seu senso crítico e sua reflexão.

- A falta de uma dramaturgia também se evidencia no caso – que infelizmente ainda existe – de textos que insistem em manter uma postura doutrinária ou moralista, em que uma trama ou narrativa banal, sem um mínimo de inventividade e de originalidade, é mero pretexto para uma "mensagem" ou "moral da história", em que a relação adulto / criança é ainda uma relação autoritária, vertical, manipuladora, que as trata como "massa de manobra" oca e moldável, a ser normatizada e dirigida. O que é evidente no caso de espetáculos que provocam ou instigam a platéia infantil a uma gritaria de macacos de auditório de TV, ou de animação de festinhas de aniversário – como no pior teatro de cunho marcado ou exclusivamente comercial, que vê nas crianças apenas uma clientela mercadologicamente compensadora, na qual acham que vale a pena "investir", até com uma produção dispendiosa ou visualmente atraente.

- Menos grave, mas mesmo assim ainda merecedora de atenção, a elaboração e/ou domínio da expressão: assim como são equivocados um tati-bitati e/ou trejeitos, gritinhos e pulinhos supostamente infantis, é falha paralela também seu avesso, ou seja, o uso de termos, expressões, ou até idéias, pensamentos e visão que fazem parte da experiência adulta – o que se revelou freqüente no caso de adaptações de contos / narrativas já existentes, que estavam previamente direcionados pelos autores a um público adulto.

A busca de uma (nova) dramaturgia também se faz sentir naqueles que, dizendo-se ou sentindo-se comprometidos com uma indefinida "contemporaneidade", testam suas tentativas:

- na renovação / inovação temática. Como dado mais auspicioso, no caso, um humanizador resgate de elementos esquecidos ou desqualificados por esta racionalista civilização ocidental cristã: o imaginário, a fantasia, a afetividade, o lirismo e um humor lúdico e crítico, muito próximo, por vezes, da visão crítico-cômica da cultura popular. A ligação com a cultura popular, na pesquisa / adaptação de narrativas de diferentes raízes (indígenas, ibéricas, afro); ou no apelo ao folclórico, tomado como ponto de partida e com resultados tanto mais felizes quanto mais lhe foram acrescentados elementos novos e criativos capazes de fazer emergir sua teatralidade; ou de uma escrita cênica pautada nos folguedos populares e incorporando, por vezes, de forma inventiva e inovadora, seu humor, sua inversão de foco / visão da realidade, sua síntese narrativa – mesmo que, às vezes, correndo o risco de assim reproduzir também os preconceitos de uma visão tradicional e conservadora.

- no uso da narrativa e resgate da palavra em sua oralidade e valor expressivo. Não cabe aqui a discussão da intertextualidade, ou do duplo, ou do falar simultaneamente em 1ª e 3ª pessoa que marcam a literatura (e não só dramática) contemporânea. Mas a inserção de traços narrativos, ou o trabalho com a narrativa oral cênica, foi uma das tendências mais marcantes ou dos aspectos mais visíveis e constantes do Festival. O melhor ou o pior resultado, no caso, ficou visivelmente ligado à capacidade de entender o que é uma linha de ação dramática e o que são os aspectos narrativos da ação, ou seja, de não abandonar os recursos efetivamente dramáticos e cênicos. Do que vimos, quando o projeto de encenação se sobrepôs ao texto, em vez de a ele se in-corpo-rar organicamente, a dissociação entre ambos acabou desvalorizando o texto – que assim perde seu potencial poético, mítico, mágico, não favorecendo sequer a encenação, ou seja, com prejuízo para ambos. O mesmo se dando no caso contrário, quando se enfatizou uma oralidade centralizadora, "literalizando" toda a estrutura e esquecendo que teatro é re-present-ação, isto em uma ação que se faz presença (no ator / personagem) e presente (no tempo) e não simples "ilustração", com a figura do ator, de cenas "contadas" ou descritas.

- na incorporação / fusão de diferentes linguagens, ora gerando um espetáculo multimídia (com projeções, vídeos, desenho animado); ou com inserção de técnicas de animação (bonecos / atores), de técnicas circenses; ou com a dança, a música, a linguagem gestual / corporal como elementos ativos da expressão; ou fazendo do ator um performer, centrado em sua presença física e autobiograficamente estabelecendo uma relação pessoal e direta com os objetos cênicos e a situação em foco.

Mas, por tudo que vimos, uma conclusão se tornou possível e necessária: os melhores espetáculos foram aqueles em que:
- havia um bom texto, com uma carpintaria geradora de boas possibilidades cênicas;
- com um adequado domínio da língua – não só em termos de correção ou da adequação à criança, mas de criatividade da expressão;
- com uma temática sugestiva, não só enquanto idéia ou assunto, mas na própria forma de seu desenvolvimento, deram a encenadores e intérpretes um alicerce sólido para um desses trabalhos que é um presente para o espectador de todas as idades.


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 3:06 PM 1 Comentários
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