Um espaço para reflexão sobre o teatro infanto-juvenil

Conteúdo Atualizado Semanalmente



sábado, janeiro 27, 2007


 

TEATRO - EXPRESSÃO DO HUMANO



por carlos augusto nazareth

A origem primeira do teatro se perde nas noites dos tempos quando o homem das cavernas, voltando de suas caçadas, reproduzia para seu grupo suas histórias, revivendo lutas, medos, rasgos de coragem vivenciados. Nasce, assim, a narrativa - esta é a origem dos contadores de histórias, transmissores do saber humano e esta é também a origem do teatro, quando os homens re-viviam suas façanhas de luta, medo e coragem.As narrativas se especificaram, se multiplicaram em gêneros diversos e apesar de hoje, no início de novo século, as quebras de fronteiras entre gêneros dominarem a produção pós-moderna, as características básicas e fundamentais de cada narrativa continuam como sinalizadores fundamentais de cada uma delas.“... os trânsitos culturais carecem de sinalizações, pois as marcas de identidade permitem que a polifonia se distinga de um falatório vazio, de um vale-tudo em que as diferenças são negadas para facilitar o jogo do mesmo, disfarçado de outro” (Aparecida Paiva in “No fim do século: a diversidade – o jogo do livro infantil e juvenil.”O teatro tem suas sinalizações próprias, Deve ser, antes de tudo, tomado como Obra de Arte – expressão difícil de se definir – dentre as inúmeras tentativas, diz Jean-Louis Ferrier: “O indizível – aí é que começa a Arte”.O espetáculo teatral, em todos os tempos, em todas as civilizações, tem o caráter ritualístico, como outro parâmetro.. Esta origem ritualística, como todo ritual, pretende mantê-lo fiel a seus princípios básicos e, como ritual, a celebração obedece a uma série de preceitos que constituem a sua própria essência narrativa que é o contar.Sistematicamente o teatro só começou a ser analisado como narrativa em 1915, pelos formalistas russos; o teatro congrega inúmeras manifestações artísticas do ser humano: a dança, o canto, a palavra, o gesto – e assim chegamos a idéia de tecido – inúmeras linguagens que se entrelaçam e criam uma tessitura unaPartindo deste conceito de tecido, trama, urdidura, o espetáculo teatral é um tecido composto de diversas linguagens: o texto, o ator – corpo, voz, emoção - cenário, figurino, música, luz.Um espetáculo teatral, tomado como Obra de Arte revive, com todas as emoções, fatos acontecidos em passado remoto ou próximo ou fatos que projetamos irão acontecer. Isto se faz “in praesentia” do espectador, naquele momento, único, que não se repete, por isto efêmero. O texto é o registro que eterniza a idéia, mas a encenação é que proporciona este fato único – a vivência que o teatro proporciona quando mostra, mimetiza, em seu conceito mais amplo o fato acontecido ou a acontecer.O teatro continua discutindo as questões do homem, em vários níveis e formas, mas as perguntas básicas estão sempre lá presentes. Quem sou? De onde venho? Para onde vou?O teatro tem também função estética, cartártica, questionadora, transformadora, política, social, que enquanto obra de arte fala do homem, para o próprio homem, questiona e provoca o homem. Por isso o teatro – em sendo uma obra de arte – tem todas estas funções em si mesmo. Assistir a um espetáculo teatral deve ser o suficiente para que todos estes mecanismos da razão e da emoção disparem no espectador, sem ensinamentos e assim a aprendizagem acontecerá de modo natural, respeitadas as individualidades de quem assiste.A discussão sobre e após o espetáculo teatral pode acontecer, mas quando com caráter investigativo, de profissionais ou interessados em melhor compreender este fenômeno artístico e nunca para se entender o espetáculo, que tem que se fazer compreender e exercer sua função por si mesmo.“O teatro é imitação da vida” – essa máxima leva muitas vezes a equívocos que tangem áreas perigosas. O teatro não é um processo puramente imitativo. O imitar aristotélico é o imitar das ações do homem, das questões humanas. O imitar o estado do homem e não a ação simplesmente é aquilo que recria o clima em que se deu a ação com a mesma emoção, motivação e conseqüência. Portanto, a mimesis é, para Aristóteles, ativa e criativa e não meramente reprodutora de ação desprovida de sentimento e descontextualizada.Tal a importância tem este resgate que J. Moreno, a partir do teatro criou seu processo terapêutico, o psicodrama, que tem toda a estrutura do teatro acrescidos dos alter-egos - processo este que visa resgatar emoções, afetos, pedaços de vida perdidos no inconsciente, que, trazidos à tona através da teatralidade, possibilitam o homem melhor entender e sentir seu estar no mundo, porque re-vive totalmente o fato-chave cujo significado havia se perdido.O teatro como espetáculo também tem esta função e a exercita, só que, embora terapêutico, não é terapia.A origem do teatro para crianças teve o caráter didático de catequese utilizado pelos jesuítas no processo de colonização do Brasil, onde pretendiam ensinar aos gentios o que era certo, sob o ponto de vista da moral cristã.Mais tarde textos europeus, que retratavam uma realidade diversa da nossa começaram a ser utilizados pelas escolas como instrumento moralizante, ensinando bons hábitos e bons costumes.Este início do teatro para crianças no Brasil estende seus “tentáculos” até hoje. A proposta de narrativa pragmática, como fala Aparecida Paiva (org) em seu livro “No fim do século: a diversidade – o jogo do livro infantil e juvenil.”Até que a partir da solicitação de um produtor, Lucia Benedetti escreve o primeiro texto teatral voltada para criança, “O casaco encantado”, encenado pela Companhia Os Artistas Unidos, tendo Henriette Morineau, a primeira dama do teatro brasileiro de então, no papel da bruxa. Tanto sucesso fez que passou a ser apresentado no horário noturno também. Estava dada a partida para um percurso que evidentemente não terminará nunca, mas que precisa ser percorrido com mais consciência, conhecimento e rapidez.Em torno de 1950 surge Maria Clara Machado e o Tablado que dá uma nova estrutura à dramaturgia para crianças. Outros autores também importantes na época surgiram com trabalhos significativos, como Tatiana Belink, Pernambuco de Oliveira. E durante duas décadas a referência de teatro para crianças era Maria Clara Machado e sua dramaturgia característica.Nos anos 70 surgiu um argentino, Ilo Krugli, com o espetáculo História de Lenços e Ventos lançou uma nova dramaturgia para o teatro para crianças, influenciando inclusive o teatro para adultos.A partir, portanto, da década de 50 o teatro para crianças começa a se expandir, a se profissionalizar.No entanto, sempre considerado arte menor, considerado teatrinho, o teatro para crianças começou a ser utilizado como regulador de um mercado de trabalho instável como o do teatro. Passou a ser usado para suprir a dificuldade de ganho com o teatro para adultos. E muitos produtores inescrupulosos aí surgiram, criando espetáculos de péssima qualidade, dominando o chamado Projeto Escola, que durou o tempo das escolas perceberem o que estava acontecendo e começarem a mudar sua postura em relação ao teatro na escola.Vários projetos começaram a surgir, a maioria deles com a proposta de “formação de platéia”. Nos perguntamos que sentido teria esta formação de platéia – se o objetivo de criar um público para o futuro, ou o objetivo de introduzir o teatro nos hábitos culturais do brasileiro, levando esta expressão artística democraticamente a toda a população.Tomando o Rio de Janeiro como referência, 90% dos teatros estão localizados na Zona Sul do Rio de Janeiro, portanto a população, como um todo, fica alijada desta possibilidade de contato com esta expressão artística. Alguns projetos tentam democratizar esta prática mas não há uma postura forte, pública e suficientemente forte para que se instaure esse hábito na população.Sabemos que pais e professores é que decidem o tipo de lazer cultural ao qual a criança será encaminhada. Pais levam seus filhos aos espetáculos mais próximos de casa, porque há muito pouco espaço para a discussão deste produto cultural.Os professores não são capacitados, em sua formação, para fazer esta escolha, porque também são mediadores desta prática. A maioria deles, na verdade, nunca ou quase nunca, freqüenta ou sequer freqüentou teatro, por razões sócio-econômicas e porque também não foram iniciados nem preparados para esta prática.O teatro, em sendo literatura dramática, deveria ter o mesmo tratamento que a literatura infantil, com tantos projetos dos poderes públicos e privados para difundir este hábito mesmo assim insuficientes. E o entendimento da função do texto teatral é também restritora a todas as possibilidades que ele oferece como instrumento de expansão do imaginário infantil. Há necessidade de uma alfabetização da leitura do texto teatral, para que ele possa participar como determina inclusive a lei, do acervo de leitura da criança. O texto teatral é literatura. Literatura dramática.Algumas medidas são evidentes. O professor precisa ser capacitado em espetáculo, como mediador que é, assim como a comunidade precisa ter acesso também ao teatro. Aliando a capacitação profissional do professor à democratização do espaço para o teatro , acesso da comunidade ao teatro, aliando a vontade política, buscando espaços de discussão das Artes como um todo na importância da formação da criança, só assim se conseguirá caminhar em direção a um futuro mais promissor neste importante contato da criança com a Arte em geral, mas aqui, se tratando especificamente do Teatro e do texto teatral, embora todas as outras expressões artísticas tenham igual importância.




# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 6:33 PM 2 Comentários  

O TEATRO - EXPRESSÃO DO HUMANO


O TEATRO - EXPRESSÃO DO HUMANO

A origem primeira do teatro se perde nas noites dos tempos quando o homem das cavernas, voltando de suas caçadas, reproduzia para seu grupo suas histórias, revivendo lutas, medos, rasgos de coragem vivenciados. Nasce, assim, a narrativa - esta é a origem dos contadores de histórias, transmissores do saber humano e esta é também a origem do teatro, quando os homens re-viviam suas façanhas de luta, medo e coragem.
As narrativas se especificaram, se multiplicaram em gêneros diversos e apesar de hoje, no início de novo século, as quebras de fronteiras entre gêneros dominarem a produção pós-moderna, as características básicas e fundamentais de cada narrativa continuam como sinalizadores fundamentais de cada uma delas.

“... os trânsitos culturais carecem de sinalizações, pois as marcas de identidade permitem que a polifonia se distinga de um falatório vazio, de um vale-tudo em que as diferenças são negadas para facilitar o jogo do mesmo, disfarçado de outro” (Aparecida Paiva in “No fim do século: a diversidade – o jogo do livro infantil e juvenil.”

O teatro tem suas sinalizações próprias, Deve ser, antes de tudo, tomado como Obra de Arte – expressão difícil de se definir – dentre as inúmeras tentativas, diz Jean-Louis Ferrier: “O indizível – aí é que começa a Arte”.
O espetáculo teatral, em todos os tempos, em todas as civilizações, tem o caráter ritualístico, como outro parâmetro.
. Esta origem ritualística, como todo ritual, pretende mantê-lo fiel a seus princípios básicos e, como ritual, a celebração obedece a uma série de preceitos que constituem a sua própria essência narrativa que é o contar.
Sistematicamente o teatro só começou a ser analisado como narrativa em 1915, pelos formalistas russos; o teatro congrega inúmeras manifestações artísticas do ser humano: a dança, o canto, a palavra, o gesto – e assim chegamos a idéia de tecido – inúmeras linguagens que se entrelaçam e criam uma tessitura una
Partindo deste conceito de tecido, trama, urdidura, o espetáculo teatral é um tecido composto de diversas linguagens: o texto, o ator – corpo, voz, emoção - cenário, figurino, música, luz.
Um espetáculo teatral, tomado como Obra de Arte revive, com todas as emoções, fatos acontecidos em passado remoto ou próximo ou fatos que projetamos irão acontecer. Isto se faz “in praesentia” do espectador, naquele momento, único, que não se repete, por isto efêmero. O texto é o registro que eterniza a idéia, mas a encenação é que proporciona este fato único – a vivência que o teatro proporciona quando mostra, mimetiza, em seu conceito mais amplo o fato acontecido ou a acontecer.
O teatro continua discutindo as questões do homem, em vários níveis e formas, mas as perguntas básicas estão sempre lá presentes. Quem sou? De onde venho? Para onde vou?
O teatro tem também função estética, cartártica, questionadora, transformadora, política, social, que enquanto obra de arte fala do homem, para o próprio homem, questiona e provoca o homem. Por isso o teatro – em sendo uma obra de arte – tem todas estas funções em si mesmo. Assistir a um espetáculo teatral deve ser o suficiente para que todos estes mecanismos da razão e da emoção disparem no espectador, sem ensinamentos e assim a aprendizagem acontecerá de modo natural, respeitadas as individualidades de quem assiste.
A discussão sobre e após o espetáculo teatral pode acontecer, mas quando com caráter investigativo, de profissionais ou interessados em melhor compreender este fenômeno artístico e nunca para se entender o espetáculo, que tem que se fazer compreender e exercer sua função por si mesmo.
“O teatro é imitação da vida” – essa máxima leva muitas vezes a equívocos que tangem áreas perigosas. O teatro não é um processo puramente imitativo. O imitar aristotélico é o imitar das ações do homem, das questões humanas. O imitar o estado do homem e não a ação simplesmente é aquilo que recria o clima em que se deu a ação com a mesma emoção, motivação e conseqüência. Portanto, a mimesis é, para Aristóteles, ativa e criativa e não meramente reprodutora de ação desprovida de sentimento e descontextualizada.
Tal a importância tem este resgate que J. Moreno, a partir do teatro criou seu processo terapêutico, o psicodrama, que tem toda a estrutura do teatro acrescidos dos alter-egos - processo este que visa resgatar emoções, afetos, pedaços de vida perdidos no inconsciente, que, trazidos à tona através da teatralidade, possibilitam o homem melhor entender e sentir seu estar no mundo, porque re-vive totalmente o fato-chave cujo significado havia se perdido.
O teatro como espetáculo também tem esta função e a exercita, só que, embora terapêutico, não é terapia.
A origem do teatro para crianças teve o caráter didático de catequese utilizado pelos jesuítas no processo de colonização do Brasil, onde pretendiam ensinar aos gentios o que era certo, sob o ponto de vista da moral cristã.
Mais tarde textos europeus, que retratavam uma realidade diversa da nossa começaram a ser utilizados pelas escolas como instrumento moralizante, ensinando bons hábitos e bons costumes.
Este início do teatro para crianças no Brasil estende seus “tentáculos” até hoje. A proposta de narrativa pragmática, como fala Aparecida Paiva (org) em seu livro “No fim do século: a diversidade – o jogo do livro infantil e juvenil.”
Até que a partir da solicitação de um produtor, Lucia Benedetti escreve o primeiro texto teatral voltada para criança, “O casaco encantado”, encenado pela Companhia Os Artistas Unidos, tendo Henriette Morineau, a primeira dama do teatro brasileiro de então, no papel da bruxa. Tanto sucesso fez que passou a ser apresentado no horário noturno também. Estava dada a partida para um percurso que evidentemente não terminará nunca, mas que precisa ser percorrido com mais consciência, conhecimento e rapidez.
Em torno de 1950 surge Maria Clara Machado e o Tablado que dá uma nova estrutura à dramaturgia para crianças. Outros autores também importantes na época surgiram com trabalhos significativos, como Tatiana Belink, Pernambuco de Oliveira. E durante duas décadas a referência de teatro para crianças era Maria Clara Machado e sua dramaturgia característica.
Nos anos 70 surgiu um argentino, Ilo Krugli, com o espetáculo História de Lenços e Ventos lançou uma nova dramaturgia para o teatro para crianças, influenciando inclusive o teatro para adultos.
A partir, portanto, da década de 50 o teatro para crianças começa a se expandir, a se profissionalizar.
No entanto, sempre considerado arte menor, considerado teatrinho, o teatro para crianças começou a ser utilizado como regulador de um mercado de trabalho instável como o do teatro. Passou a ser usado para suprir a dificuldade de ganho com o teatro para adultos. E muitos produtores inescrupulosos aí surgiram, criando espetáculos de péssima qualidade, dominando o chamado Projeto Escola, que durou o tempo das escolas perceberem o que estava acontecendo e começarem a mudar sua postura em relação ao teatro na escola.
Vários projetos começaram a surgir, a maioria deles com a proposta de “formação de platéia”. Nos perguntamos que sentido teria esta formação de platéia – se o objetivo de criar um público para o futuro, ou o objetivo de introduzir o teatro nos hábitos culturais do brasileiro, levando esta expressão artística democraticamente a toda a população.
Tomando o Rio de Janeiro como referência, 90% dos teatros estão localizados na Zona Sul do Rio de Janeiro, portanto a população, como um todo, fica alijada desta possibilidade de contato com esta expressão artística. Alguns projetos tentam democratizar esta prática mas não há uma postura forte, pública e suficientemente forte para que se instaure esse hábito na população.
Sabemos que pais e professores é que decidem o tipo de lazer cultural ao qual a criança será encaminhada. Pais levam seus filhos aos espetáculos mais próximos de casa, porque há muito pouco espaço para a discussão deste produto cultural.
Os professores não são capacitados, em sua formação, para fazer esta escolha, porque também são mediadores desta prática. A maioria deles, na verdade, nunca ou quase nunca, freqüenta ou sequer freqüentou teatro, por razões sócio-econômicas e porque também não foram iniciados nem preparados para esta prática.
O teatro, em sendo literatura dramática, deveria ter o mesmo tratamento que a literatura infantil, com tantos projetos dos poderes públicos e privados para difundir este hábito mesmo assim insuficientes. E o entendimento da função do texto teatral é também restritora a todas as possibilidades que ele oferece como instrumento de expansão do imaginário infantil. Há necessidade de uma alfabetização da leitura do texto teatral, para que ele possa participar como determina inclusive a lei, do acervo de leitura da criança. O texto teatral é literatura. Literatura dramática.
Algumas medidas são evidentes. O professor precisa ser capacitado em espetáculo, como mediador que é, assim como a comunidade precisa ter acesso também ao teatro. Aliando a capacitação profissional do professor à democratização do espaço para o teatro , acesso da comunidade ao teatro, aliando a vontade política, buscando espaços de discussão das Artes como um todo na importância da formação da criança, só assim se conseguirá caminhar em direção a um futuro mais promissor neste importante contato da criança com a Arte em geral, mas aqui, se tratando especificamente do Teatro e do texto teatral, embora todas as outras expressões artísticas tenham igual importância.







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segunda-feira, janeiro 22, 2007


 

A ESCRITA DE SI


UMA LEITURA SOBRE A QUESTÃO


por Nanci Gonçalves da Nóbrega



Considero dois autores fundamentais para a reflexão acerca de uma escrita de si: Michel Foucault – principalmente com suas considerações sobre os hypomnemata – e Roland Barthes, conhecido pensador das textualidades .
Gosto de pensar a noção de uma escrita de si como o exercício constante de um pensar sobre si mesmo na elaboração que o ato de escrever (-se) viabiliza. É um falar sobre o Eu; um modo, uma forma de constituição do Eu – este o que a escrita sobre si proporciona. Foucault denomina a isto de “escritura etho-poiética”, pois possui uma função poética e engendra uma política de criação de si. Demonstra um compromisso com a vida. É, conforme Foucault, uma tessitura, um amálgama de escrita e leitura, pois incita o mergulho na multiplicidade de materiais de expressão criadora trazidos pelas leituras que se vai fazendo: os fragmentos costurando-se. E, fundamentalmente, a apropriação que se faz disso. “Fazer da recoleção do logos fragmentário e transmitido pelo ensino, a audição ou a leitura, um meio para o estabelecimento de uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível”.
No tocante aos hypomnemata, Foucault inspirou-se, ele mesmo, em uma das duas formas que a escrita sobre si assume na cultura greco-romana (a outra é a correspondência ). Hypomnemata eram os cadernos pessoais contendo citações, fragmentos de obras, pequenas reflexões, ocorrências, frases, relatos e pensamentos que serviam como “aide-mémoire” ao cotidiano; como memórias sobre o escutado, o feito, o lido, o vivido. Utilizados principalmente nas classes cultas, é óbvio, eram como “anotações de vida”.
Hoje se discute muito acerca dos poucos rastros e lastros que a escrita “científica” deixa. O que dificulta conhecermos as implicações, os fios que a teceram e às descobertas científicas; as dúvidas, os impasses que surgiram, os erros, as vitórias alcançadas. São métodos “assépticos e tristes”, neutros e neutralizantes, como conseqüência, que compõem uma memória quase esquecida a que vem registrada e dada a conhecer. São textos que se percorre por obrigação, sem fruição, e que logo depois esquecemos. Textos que não provocam, não nos fazem suspender a cabeça da leitura (Barthes). Talvez porque lhes falte paixão?
Os seus autores deveriam perguntar-se constantemente: essa escrita é do quê? essa escrita é como? essa escrita é para quê? Pois a escrita pode ter uma função etho-poiética, ou melhor, uma função estética e política de criação de si. Um compromisso com a vida, com a potência criadora que habita em nós.
Através da mistura escrita/leitura podemos compor combinatórias com a diversidade dos materiais de expressão trazidos pelas leituras. Foucault menciona o se dobrar, o redobrar (-se) e o se desdobrar em múltiplas afirmações. É necessário haver uma composição das leituras e releituras, das escolhas feitas, dos fragmentos eleitos naquele que escreve e no que escreve. Conectar fragmentos e narrá-los como um todo. Totalidade que está em constante movimento, não cristalizada em conceitos, pré-conceitos, que se enovela, se enrosca com outros logo adiante. Conectar fragmentos criando um estilo de escrita. Ao ser percorrido pelas leituras que se fez, apossar-se delas e fazer sua própria afirmativa. Transmutar-se a partir e por causa deste emaranhado de fragmentos moventes. O surgimento, pois, não de um dito novo, mas de um dito com novo valor.
No atual mercado de bens simbólicos, escrever para não perder. Passar da esfera auditiva para a visual permite reexaminar, reordenar, retificar. Assim, os hypomnemata para mim são como palimpsestos, verdadeiros exercícios de “ruminação construtiva” que a escritura permite, oportunizando uma “escrita dos movimentos interiores” que desemboca certamente numa estética da existência, como queria Foucault. (O exemplo do “Proler Carcerário” de Vitória da Conquista, BA, 1992...)
“Ler é realizar a experiência de se pensar pensando o mundo”. (Eliana Yunes)


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sábado, janeiro 13, 2007


 

CIÊNCIA DO IMAGINÁRIO



por Josélia Neves (1)



Reflexões sobre a Ciência do Imaginário e as contribuições de Durand: um olhar iniciante


Este artigo se propõe a construir uma reflexão sobre o imaginário a partir de leituras introdutórias que partem da imaginação, bem como de pesquisas referentes aos trabalhos de Gilbert Durand, particularmente a obra, "A Imaginação Simbólica" - referência de estudos no âmbito da temática posta. Pretendemos sistematizar um estudo inicial através de inferências sobre as representações ou as formas simbólicas presentes nas práticas sociais, relacionando os principais conceitos desta ciência emergente.

A produção deste texto representa um esforço no sentido de compreender a constituição do imaginário. Trata-se portanto de um olhar de uma iniciante, daí a idéia de considerarmos leituras também introdutórias, partindo da imaginação para o imaginário, um percurso textual muito semelhante ao que estamos trilhando cognitivamente para apreender a temática posta.

Nosso trabalho foi no sentido de produzir um texto inicial, com características quase didáticas, que possa contribuir na leitura de quem tem poucas informações sobre o imaginário, e nesta perspectiva, se coloca como ponto de partida para outras leituras sobre a questão.

De acordo com Trindade e Laplatine(1996), a imaginação pode ser compreendida como tudo aquilo que não existe, um mundo oposto à realidade concreta. Refere-se a uma produção de devaneios, de imagens que explicam e permitem a evasão para longe do cotidiano. Para estes autores, a necessidade de entendermos a realidade é no intuito de superá-la e, uma das formas possíveis é através da imaginação, uma vez que possibilita chegarmos ao real e até vislumbrá-lo antes deste se constituir em real.

As sociedades ocidentais utilizam a imagem como forma de conhecimento e comunicação social. Acontece que as imagens padronizadas não conseguiram superar as práticas do imaginário como as narrativas orais, o teatro de rua e outras manifestações neste sentido. Fenômeno este identificado por Durand - fundador do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário em Grenoble, 1966, como a civilização da imagem já que produz "efeitos perversos e perigosos que ameaçam a humanidade do sapiens".

Nesta perspectiva, a imagem acaba impondo seu sentido a um espectador passivo pois a imagem "pronta" anestesia aos poucos a criatividade individual da imaginação. Há registros de que Bachelard - pensador-referência do imaginário, dava preferência à imagem literária do que a imagem irônica.

Neste sentido este tipo de imagem, é uma forma de violentação das massas, pois o espectador é orientado pelas atitudes coletivas da propaganda, como por exemplo, a ilustração apresentada por Trindade e Laplatine(1996) como o nivelamento que ocorre com o espectador de TV que engole com a mesma voracidade espetáculos de variedades, discursos presidenciais, receitas de cozinhas e notícias catastróficas ou o mesmo "olho de peixe morto" que contempla as crianças que morrem de fome na Somália, a "purificação étnica" na Bósnia ou o arcebispo de Paris subindo a escadaria da Basílica de Montmartre.

Esta anestesia da criatividade do imaginário e o nivelamento dos valores numa indiferença espetacular, são reforçados pela questão da "fabricação das imagens". A sua distribuição escapa de um responsável, isso permite às manipulações éticas e as "desinformações" por produtores não identificados. A famosa liberdade de informação é substituída por uma total "liberdade de desinformação". Pois a imagem sufoca o imaginário.

O imaginário reconstrói ou transforma o real; funciona como uma imaginação transgressora do presente, refere-se a um possível não realizável no presente, mas que pode vir a ser real no futuro. Ex: Júlio Verne transgrediu através do imaginário quando construiu o possível real do futuro: o submarino que permitia conhecer o mundo em 80 dias. Portanto antes de serem pensadas por cientistas, muitas invenções foram vislumbradas por poetas e escritores. Então, a vida social é impossível fora de uma rede simbólica.

Gilbert Durand, citado por Cemin (1998), entende o Imaginário como "o conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens. De sua coleta de imagens, ele retira uma série de conjuntos constituídos em torno de núcleos organizadores (constelações e arquétipos).

Este filósofo e antropólogo, nasceu em 1º de maio de 1921 em Chambéry, na França. Recebeu forte influência de mestres como: Bachelard, Jung, Lévi-Strauss, entre outros. Graduou-se em Filosofia (1947); doutorou-se em Letras (1959). Fundou (1967) e presidiu o Centro de Pesquisas sobre o Imaginário; dentre vários títulos e ocupações, é professor catedrático na Universidade de Grenoble.

Não se atendo as propostas da "moderna ciência ocidental" baseada no racionalismo cartesiano e no positivismo de Comte, desenvolveu a mitodologia - orientação epistemológica que surge na perspectiva de se constituir numa abordagem científica que leva em conta o elemento espiritual e coletivo na concretude da realidade imediata.

A favor da interdisciplinaridade, opõe-se ao dualismo filosófico que coloca em extremos o materialismo e o subjetivismo; através da teoria que desenvolveu, Durand ratifica a retórica da imagem simbólica e reafirma a dimensão dos arquétipos e a força diretiva dos mitos, pois como ele mesmo já afirmou, o imaginário não é uma simples abstração uma vez que segue regras estruturais da hermenêutica.

Ao longo de 15 anos de trabalho, Durand sistematizou uma classificação dinâmica e estrutural das imagens e propôs uma teoria que considera as configurações constelares de imagens simbólicas, a partir de arquétipos(símbolos universais) - as estruturas antropológicas do imaginário - e também uma metodologia sustentada no "método crítico do mito", daí a mitodologia, que supõe duas formas de análise: a mitocrítica e a mitanálise.

A questão do mito, vista mais como relato fantasioso, emerge com muita vitalidade no pensamento de Durand, pois é visto como o ultimo fundamento teoricamente possível de explicação humana - da operacionalização do conceito de mito, o antropólogo desenvolve a sua mitodologia.

Durand vê o mito como um arranjamento de símbolos e arquétipos que se apresenta através de mitemas2 - discurso este relativo ao ser, onde está investida uma crença que propõe realidades instaurativas.

Para a mitodologia de Durand, o imaginário é a referência última de toda a produção humana através de sua manifestação discursiva, o mito, e defende que o pensamento humano move-se segundo quadros míticos. Ou seja para este autor em todas as épocas ou sociedades existem mitos subjacentes que orientam e modelam a vida humana. O propósito do trabalho do filósofo é justamente desvelar os grandes mitos diretivos, isto é aqueles responsáveis pela dinâmica social ou pelas produções individuais representativas do imaginário cultural, no tempo e no espaço.

Quando um mito diretivo manifesta-se através da redundância, é identificado como mitemas obsessivos - aqueles que se repetem de forma recorrente, através da organização de símbolos (que embora nunca sejam um dado a priori, já que apontam para múltiplos sentidos, através da repetição é possível sua classificação, pois neste caso aponta para um único sentido).

A mitocrítica - termo forjado por Durand em 1970, refere-se a um ensaio metodológico em que foram selecionadas as metáforas obsessivas (grupos de imagens que se repetem) e procura interpretá-las mediante o Mito Pessoal do autor.

A noção de mitocrítica de Durand foi desenvolvida "para significar o emprego de um método de crítica literária, de crítica do discurso que centra o processo de compreensão no relato de caráter mítico inerente à significação de todo e qualquer relato". Ou seja, a mitocrítica precisa de um "texto cultural'; o discurso literário, por exemplo está muito próximo do mito em função da narrativa que apresenta, por isso a linguagem mítica é sempre uma linguagem literária.

Os mitemas constitutivos da narrativa mítica, repetem-se e por isso mesmo tornam-se cada vez mais significativos. Um mitema pode ser um motivo, um tema, um objeto, um cenário mítico, um emblema, uma situação dramática, etc.

A mitocrítica - é um método de crítica de texto literário, de estilo de um conjunto textual de uma época ou de um determinado autor que põe a descoberto um núcleo mítico, uma narrativa fundamentadora e o(s) mito(s) que atua por detrás dela. Ela desvela, um nível de compreensão maior que se alinha com os grandes mitos clássicos.

Durand estabelece três momentos para a identificação dos mitemas e do mito diretivo do "texto cultural":

1º) - um levantamento dos "elementos" que se repetem de forma obsessiva e significativa na narrativa e que são as sincronias míticas da obra;
2º) - um exame do contexto em que aparecem, das situações e da combinatória das situações, personagens e cenários, etc.;
3º) - a apreensão das diferentes lições do mito (diacronia) e das correlações de uma tal lição de um tal mito com as de outros mitos de uma época ou um espaço cultural determinados.

Portanto, o mito vai se definindo a partir da organização de símbolos e de um quorum de mitemas, pois o mitema é um "átomo mítico" de natureza estrutural.

Para Durand, os mitemas podem se manifestar, e semanticamente atuar, de dois modos diferentes:

1º) de modo patente - repetido de forma explícita e de conteúdo homólogo;
2º) de modo latente - repetido de forma implícita, pela intencionalidade.

Então, de acordo com o pai da mitocrítica, ela "evidencia, num autor, na obra de uma época e dum meio dados, os mitos diretivos, regentes, e suas transformações significativas. Possibilita mostrar como tal traço de caráter pessoal do autor contribui para a transformação da mitologia epocal dominante ou, ao contrário, acentua tal ou tal mito instituído. Mostra também que cada momento cultural tem certa densidade mítica onde se combinam e se embatem(...) mitos diferentes.

A mitocrítica tende a extrapolar o texto ou o documento estudado, a ampliar para lá da 'obra de civilização' rumo a detecção, pelas 'metáforas obsessivas', que outros autores chamam de Psicocrítica, o 'Mito Pessoal' que rege o destino do individual; mas a mitocrítica, pois que todo 'mito pessoal' é um 'mito coletivo' vivido num/por um ideário, tende a ampliar rumo às preocupações sócio-histórico-culturais. E assim pede, como coroamento, uma mitanálise, que está para um momento cultural e para um dado conjunto social, como a Psicanálise está para a psyche individual".

Isto é, enquanto a mitocrítica está centrada na análise dos mitos de "textos culturais"; a mitanálise, estende a sua análise ao contexto social, como um todo, no sentido de aprender os mitos vigentes diretivos de uma dada sociedade, num período de tempo relativamente extenso e delimitado.

A mitanálise, é um termo que Durand forjou em 1972, levando em conta o modelo da Psicanálise. Trata - se de um método de análise científica dos mitos, que "tenta apreender os grandes mitos que orientam ou (desorientam...) os momentos históricos, os tipos de grupos e de relações sociais", nas palavras do mestre. Por seu intermédio, procede-se a um desvelamento dos movimentos míticos nas sociedades, pois a mitoanálise desloca os métodos da mitocrítica para um campo maior: o do aparelho, das instituições ou das práticas sociais; uma abordagem, portanto, que envolve todo o conteúdo antropológico de uma sociedade - não mais um texto mas um contexto social que envolve igualmente um reagrupamento de núcleos semânticos.

O pressuposto básico da mitanálise é o de que "numa sociedade há mitos tolerados, patentes, que circulam, e mitos latentes, que não conseguem encontrar meios simbólicos de expressão e que trabalham a sociedade a um nível profundo". Por isso mesmo, a mitanálise se faz necessária, no sentido de desvendá-los.

A fisiologia da mitanálise em Durand não permite a formação de novos mitos, mas a dinâmica cultural admite um grande número de variantes de mitos clássicos. A dinâmica cultural pressupõe que os mitos desapareçam e ressurjam ad infinitum, e a História registra seus avanços e recuos.
Durand afirma que, por detrás dos grandes movimentos históricos, houve e há uma arrumação de símbolos e mitos constituintes que representam os desejos da humanidade, pois os mitos motivam os fatos históricos.

O AT - 9 - Teste Arquétipo com 9 elementos foi desenvolvido por Yves Durand a partir da sistematização das estruturas antropológicas do imaginário de Gilbert Durand. Seus resultados validaram a teoria do antropólogo, confirmando sem ambigüidades, a existência das estruturas imaginárias, sistematizadas por aquele, e ainda mostraram-se úteis no campo da Psicopatologia.

A teoria de Durand diz que a imaginação humana representa simbolicamente a angústia humana diante da finitude e da certeza diante da morte. Da mesma forma cria várias imagens que triunfam sobre ela, revelando esquemas primários fundamentais.

O AT-9 refere-se a nove estímulos simbólicos (ou arquétipos): propõe a elaboração de um desenho e de um relato. Os arquétipos são: uma queda, uma espada, um refúgio, um monstro devorador, algo cíclico, um personagem, água, um animal e fogo. O indivíduo fará um desenho utilizando os elementos propostos e depois um relato sobre o desenho. Um questionário adicional colhe as informações complementares. Assim obtém-se um micro-universo mítico onde é possível atualizar e identificar a imagem e sentido referentes à angustia existencial, ponto de partida da teoria do antropólogo.

Muitos outros aspectos aparecem na temática do imaginário, ntretanto selecionamos aqueles que julgamos mais importantes, sem esquecermos que mais que qualquer outra, esta seleção é extremamente fragmentada e reducionista, pois diz respeito a uma coleta que foi feita com poucos elementos, ou seja, do ponto de vista de uma iniciante nos estudos do imaginário, embora não seja demais salientar que também na dimensão simbólica nunca poderemos abarcar e compreender o tudo, ou mesmo o satisfatório, sendo assim a fragmentação não é privilégio só nosso.

Enfim, nos apropriando das contribuições de Cemin, (1998) reafirmamos a validade de esforços neste sentido, pois "é nos limites, nos transbordamentos, nas reduções e complexificações de sentido, que o imaginário investe e multiplica suas metamorfoses e permanências"

Bibliografia

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1982.

LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário? Col. Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

CEMIN, Arneide. Entre o cristal e a fumaça: afinal o que é imaginário? Presença Revista de Cultura e Meio Ambiente. Porto Velho, Fundação Universidade Federal de Rondônia v. 5, no 14. Dez./1998.


NOTAS

1. Discente do Curso de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Reflexão produzida a partir das leituras sobre imaginário e particularm ente da obra de Gilbert Durand, "A Imaginação Simbólica" como pré-requisito avaliativo da disciplina Antrpologia Social ministrada pela Profa. Dra. Arneide Cemin – UNIR – junho de 2001

2. Narrativa puramente ficcional. Cada mitema é o portador de uma mesma verdade relativa à totalidade do mito. Ex. Holograma de Edgar Morin - cada fragmento e cada parte contém em si a totalidade do objeto.




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sexta-feira, janeiro 05, 2007


 

A ORIGEM DA OBRA DE ARTE



por Cláudia Juliana Barbosa de Oliveira



A origem da obra de arte é um ensaio publicado pela primeira vez em 1977, de autoria
do filósofo alemão Martin Heidegger sendo considerado como um dos mais importantes pensadores do sec. XX. A versão em análise é a tradução portuguesa de Maria da Conceição Costa, editada em 1991, fruto de três conferências realizadas em 1936. Esta obra incorre numa abordagem à natureza da obra de arte, explicando, mas não resolvendo esse enigma que é a arte. Como o próprio título do livro explicita, Heidegger empreende uma busca pela origem da arte, e sua visão vai além da estética, entrando na essência existencial da obra de arte na qual a verdade é o seu fim último – verdade desde a qual a obra se inicia. Absorvendo todo o seu significado, concluindo que a essência da arte é a Poesia e a essência desta é a instauração da verdade que só é real na sua salvaguarda.

Heidegger explica a origem da obra de arte recorrendo à dissecação de várias palavras
presentes ao longo da obra , tais como: coisa, verdade, arte, poesia, devolvendo a essas palavras o seu sentido mais radical, de modo que o próprio fenômeno analisado ganhe visibilidade através delas.
Ao longo do seu ensaio Heidegger chega à conclusão de que a essência da obra de arte é a
poesia e a essência desta é a "verdade". Para Heidegger verdade, ou melhor, aquilo que faz da verdade o que ela é, se traduz como um acontecimento histórico desde o qual o mundo de um povo se revela. A verdade assim compreendida por Heidegger é uma retomada do fenômeno que o grego antigo denominou "alethéia" – fenômeno desde o qual o ser ( dos ho mens e das coisas) vêm à tona e ganha significado. Verdade que assim nos reporta para o próprio acontecimento do mundo. Ora, se a verdade assim compreendida se mostra como a essência da Poesia, essa não pode ser compreendida como um gênero literário, pois, Poesia para Heidegger é antes o movimento desde o qual às coisas surgem _ é o movimento de produção desde onde acontece à desocultação do ente fazendo com que este ganhe corpo e significado.

No início da obra por nós analisada, Heidegger diz que a obra nasce com a atividade do artista e este só é considerado desta maneira à medida que cria a obra. É também a obra criada que permite que o artista seja denominado dessa forma. Eles têm uma relação de co -pertinência.
Nesta relação artista /obra pode se observar a relação desde a qual ambos vêm a ser. Isso porque por exemplo, o pintor só é pintor á medida que traduz, através das suas mãos , a realidade como cor. Por sua vez, a cor se revela como cor através da habilidade do artista. Nesta afinidade artista/obra ainda há um terceiro elemento: o observador, aquele que olha para a obra de arte e para o artista. O terceiro elemento desta tríade reconhece o artista e a obra e só ele tem o direito de o fazer, é o primeiro a saber o artista e a obra e também o primeiro a ver nisso arte. Mas desta relação obtém-se apenas à realidade da obra de arte e não a sua origem.
A origem da obra de arte se encontra aquém quer do artista, quer da obra, quer do seu observador. A origem da obra de arte só pode ser compreendida desde a própria instauração do mundo - que na obra de arte se deixa e faz ver. Mundo, que como vimos acima, se instaura desde o próprio acontecimento da verdade.
Mas o que se quer aqui compreender por mundo?
No curso da sua interpretação do que é a obra de arte e a sua origem Heidegger analisa o
caráter de coisa da obra de arte. O processo do artista de tornar a obra de arte numa coisa é aquele desde o qual ele lhe confere um aspecto tangível, tornando -a algo que pode ser compreendido.
Para Heidegger esse aspecto coisal que a obra de arte adquire é oriundo do próprio mundo
que ela, enquanto obra de arte, deixa e faz ver. O mundo para o nosso autor se revela como uma conjuntura, isto é: um conjunto de significados articulados desde um sentido comum. É desde essa conjuntura que as coisas passam a ganhar um significado específico, desde a relação de uso e manuseio que se estabelece com as outras coisas e com os outros - relação que nasce desde o horizonte de sentido no qual (as coisas e os outros) se acham lançados. No caso do exemplo utilizado acima, o horizonte de sentido é a pintura – desde esse horizonte é que se dá a relação a qual o homem se descobre como pintor e a realidade se descobre desde a cor. Desde essa relação tudo mais ganha significado – o pincel se descobre como apetrecho de pintura, a cadeira como algo a ser pintado, o mesmo acontece com o sapato, o campo, etc. Pois bem, a obra de arte é para Heidegger, o lugar privilegiado desde o qual essa instauração do mundo ganha visibilidade.
Isso se observa porque, igualmente no processo de criação artística existe a mesma relação de co-pertinência no que diz respeito à construção do imaginário na obra de arte. Isso porque as coisas fazem parte da imaginário da arte, mas também a arte faz parte do imaginário das restantes coisas, pois, podemos ver coisas na arte que nunca vimos no mundo real, como também podemos imaginar coisas do mundo real como obra de arte. É a criação e a recriação do nosso mundo, onde as coisas são o que são e como são conforme o uso que delas fazemos a partir do horizonte de sentido no qual nos vemos lançados.
Como as coisas fazem parte do nosso dia a dia é então compreensível que a arte, as obras
de arte também façam parte do nosso dia a dia. A obra de arte está presente de forma similar às demais coisas: encontra-se na arquitetura de nossas cidades, nas estátuas erguidas nas praças, nas imagens pictóricas das igrejas e nas próprias igrejas para além de sua presença em museus e exposições e estando tão presentes é natural que sejam iguais primordialmente às restantes coisas e o que as distingue é o poder que elas possuem de sempre abrir um novo horizonte de sentido desde o qual se nos torna possível re -significar as coisas com as quais lidamos no mundo. No entanto o que distingue a arte das restantes coisas? O artifício do artista ou a noção do seu uso prático? Heidegger prova-nos através de duas formas. Ex.: Uma estátua em pedra será uma obra de arte ou uma pedra feita em arte? A coisa -pedra é transformada em coisa-arte através do artifício do artista e é alma deste que só ultrapassando os limites do seu corpo confere vida à pedra e a transforma em arte. Ele não se limita a bater na pedra dando forma à matéria o seu toque brinda-a para além da forma com uma existência própria que doseia a coisa-pedra em coisa-arte atribuindo-lhe uma existência única exterior ao artista, mas que nunca deixa de fazer parte dele. Mas sendo a arte uma coisa com vida, o que a distingue das restantes coisas? É essencial então falar no apetrecho que está próximo do representar humano, pois, faz parte da nossa produção. E para explicar isto, Heidegger usa os sapatos de um camponês e dos sapatos representados por Van Gogh. Aparentemente não existe nenhuma diferença entre eles e se um é apenas representação pictórica do outro o que é que confere aos sapatos de Van Gogh algo de tão especial que seja diferente de ser-apetrecho? Só se apreende os sapatos se os usarmos, se os sentirmos nos pés e se soubermos andar com eles. Já ao olhar para o quadro imaginamos o seu uso, mesmo que nunca os tenhamos usado, pois, a pintura que representa os sapatos apreende o sentimento real que Van Gogh tinha por eles, ultrapassando à própria imagem de forma que chega ao terceiro, o que reconhece a obra e o artista. O olhar para o quadro cria ou recria a noção que guardamos de tal apetrecho permitindo-nos distinguí-lo das restantes coisas e compreender o real e o não -real.
Daí ser necessário distinguir o real da representação e assumir neste o caráter de transpor para o nosso imaginário a função real de tal ser apetrecho.
O tempo ajuda a criar obras de arte através de sua história, mas também lhes tira o valor
sentimental, pois, é impossível sentir o impacto no presente que uma obra de arte teve no momento histórico do seu nascimento. O tempo desapropria-se desse impacto, sentimento, mas regozija a obra com outros olhares mais distantes que a perpetuam. O tempo se revela como o fenômeno desde o qual a obra se mantém sempre a mesma à medida exata em que se descobre sempre como outra - que se descobre desde outras interpretações. Assim, a obra de arte se mantém sempre aberta a novos significados, a novas reinterpretações à medida que sempre de novo deixa e faz ver um mundo. Essa condição da obra de arte é que a faz ser o lugar privilegiado de acontecimento da verdade para Heidegger, da verdade que se revela sempre como um acontecimento histórico, por isso temporal. A verdade é a sua origem e a poesia o modo como se nos torna possível apreênde-la.

Referências Bibliográfica
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed.: Edições 70.
Tradutora: Maria da Conceição Costa.


# postado por Carlos Augusto Nazareth @ 5:24 AM 1 Comentários
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